terça-feira, agosto 30, 2005

Abbas Kiarostami, "10"

(Publicado originalmente a 4/3/2003.)

Ainda a quente, pouco tempo após o visionamento, eis as minhas primeiras reacções ao filme "10", de Kiarostami.Os caminhos que Kiarostami tinha vindo a escolher, nos últimos anos, embora representassem uma aposta na depuração e na economia de meios, não apontavam necessariamente para a demonstração de arte pobre que é este filme. Uma câmara,um carro e actores: eis os ingredientes de "10". E é tudo? Não, não é tudo. Defendo que todo o sentido, toda a portentosa legitimidade da obra de Kiarostami residem na convicção de que os elementos de um filme vulneráveis à descrição, os pólos que sustentam enredos, determinações geográficas ou sociais, motivações, não são mais do que a escada que nos ajuda a saltar o muro, e que perde o interesse uma vez alcançado o topo, esquecida em favor do inebriante panorama de pomares, estradas, colinas. Ou seja, e concretizando: no caso de "10", a extrema parcimónia dos meios induz no espectador atento, à míngua de pontos de apoio, essa disposição de procurar o "algo mais" onde se move o cinema de Kiarostami, essa região tensa de significados, ao mesmo tempo ascética e sensual, corriqueira e perpétua inimiga do senso comum, essa província que outros cineastas preferem ignorar, por falta de meios, falta de vontade, falta de talento ou falta de coragem. Deploro que a comunicação entre o cinema mais clássico (leia-se: aquele que chega às nossas salas) e o cinema dito de vanguarda ou experimental seja tão pobre, para não dizer quase inexistente. Perante "10", não pude deixar de pensar em "Beauty #2", de Warhol, no qual o plano fixo ultrapassa o seu estatuto de dispositivo cinematográfico para se transformar num interveniente, e não dos menos tirânicos ou manipuladores. Em "10", é certo, existe mais do que o plano fixo, e tanto a gestão do campo e do contracampo como as elipses temporais (já para não falar do perpétuo traveling que decorre do andamento da viatura) são inteligentemente utilizados ao serviço do fluxo dramático do filme (que existe, se bem que deliberadamente rarefeito). Porém, o constrangimento dos discursos e das atitudes, consequência do confinamento, é algo de comum a ambos os filmes. Parece-me que este apetite pela exploração de um limite funciona aqui como tentativa de colocar em evidência um aspecto específico da arte cinematográfica em que Kiarostami, manifestamente, acredita, ao contrário de tantos dos seus pares e daqueles que lhes concedem semanalmente o seu beneplácito, por meio de recensões tíbias e contentinhas.De tudo o que acima se lê não se conclua que eu recomendaria "10" para um primeiro contacto com a obra de Kiarostami. Por menos disposto que eu esteja a defender que este filme exibe como único trunfo uma radicalização rebarbativa, acredito firmemente que obras fundamentais como "Através das Oliveiras" ou "O Vento Levar-nos-á" (para não mencionar "Close-Up", simplesmente um dos filmes fulcrais das últimas décadas) constituirão uma escolha mais frutuosa.