Cinema
(Publicado originalmente a 20/7/2003.)
"Dolls", de Takeshi Kitano. Como sucede com todos os autores realmente significantes, cada filme de Kitano representa um momento de uma perpétua interrogação sobre a natureza do cinema, e sobre aquilo que distingue um filme de uma (mais ou menos hábil) justaposição de cenas, ideias, nacos de diálogo, piruetas narrativas. Em "Dolls", assistimos a um fascinante esforço de resgate de elementos que a brutalidade de um destino, à maneira de enxurrada, tenderia a arrastar consigo, num movimento que se identificaria com a própria aniquilação da possibilidade de cinema. Ao procurar reparar o irreparável (a loucura da mulher que ele abandonou, ao aceitar um casamento de conveniência), a principal personagem masculina não visa outra coisa senão subtrair alguém ao império do Absoluto, do sofrimento e da dor sem limites, que nenhuma mediação poderá mitigar; e fá-lo da única maneira possível, ou seja, tentando reinstalar a sua amada nesse mundo do Relativo onde a felicidade é possível, ainda que duvidosa; onde as pessoas estabelecem laços no tempo e no espaço, que por vezes, mas apenas por vezes, se traduzem em peripécias e enredos. Se esse caminho de regresso fosse coroado de sucesso, o resultado poderia ou não ser um filme; do óbvio malogro, Kitano faz uma solene aproximação à irredutível omnipresença da dor. À falta de um vínculo, à falta do vínculo que a sua leviandade comprometeu para sempre, a corda de que o homem se serve para amarrar um ao outro os corpos de ambos é mais do que uma desesperada artimanha, ou um mero dispositivo de segurança: é a própria materialidade do filme, o penhor da sua existência, o patético mas necessário sucedâneo de uma relação que nunca o será, e que concentra, em negativo, a totalidade das narrativas possíveis, todas elas nado-mortas, cada uma delas uma pequena porta para um matiz diferente de felicidade, com o seu estado de coisas associado, assim como imagens e sons.
Parece-me ainda que, deste ponto de vista, os dois episódios anexos (o yakuza que reencontra a sua amada da juventude num banco de jardim, e a cantora que sofre um acidente) funcionam, mau grado os seus desfechos trágicos como uma discreta vingança contra a funesta esterilidade da não-história principal. Como se o seu poder fecundador, ainda que debilitado, fosse suficiente para engendrar (e ilustrar) situações de argumento independentes, graças unicamente à proximidade física.
Quanto à intensidade estética de algumas das cenas, que chega a roçar o dificilmente tolerável, a única coisa que se me ocorre dizer é que, para quem conhece "Hana-bi", tais extremos de beleza surgem como algo que se toma quase como garantido, vindo de quem vem. Mas sem que tal prejudique a fruição.
Nem uma palavra a respeito das marionetas. Mencioná-las, e à tradição japonesa do bunraku, obrigaria a uma laboriosa construção de pontes até à outra margem, que seria a de Kleist e a de um certo ensaio... A delicadeza da tarefa leva-me a desistir da tarefa. Fim do post.
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