quarta-feira, novembro 02, 2005

Cinema (2)

(Publicado originalmente a 1/6/2003.)

"Peau d'Ange", de Vincent Pérez. Este é um filme descarada e retintamente francês, no fascínio evidenciado face à fragilidade dos seres, e na maneira como essa fragilidade é erigida em sujeito ficcional primeiro, com prioridade absoluta sobre trama, motivação, iniciação, zeitgeist, sociedade, futuro. Neste filme, que passou relativamente despercebido nas salas portuguesas, a fragilidade é repartida por duas personagens: a da jovem Morgane Moré, fatalmente vulnerável, na biografia como no semblante, e a de um Guillaume Depardieu que abandonou o romantismo malsão de "Pola X" como uma pele de cobra, instalando-se agora num registo de criatura marcada pela vida, que exacerba o seu cinismo para combater uma memória demasiado viva. A colisão efémera destes dois não-destinos exclui desde o início, de modo peremptório, qualquer perspectiva de um final que não seja trágico e doloroso. O percurso de ambos, ao sabor de acasos e bruscos assomos de motivação, desenrola-se em toada de cantata, à falta de gabarito digno de um hino.

Queria deixar uma nota final a respeito de uma sequência do filme, aparentemente tudo o que há de mais anódino. A jovem Angèle pergunta a uma religiosa se pode tomar conta do pequeno jardim (junto à prisão onde se encontra detida, suspeita de um crime que não cometeu). Em vez de resposta, surge o raccord para a cena seguinte, em que Angèle esgravata a terra do jardim. Esta sólida confiança no poder auto-explicativo da figura cinematográfica que substitui o elemento narrativo omitido (a resposta afirmativa da religiosa) é estarrecedora. A convicção de que o cinema pouco mais é do que uma tradução audiovisual de elementos narrativos convencionais predomina, nos dias de hoje, já se sabe; mas nem sempre a homenagem a tão redutor credo se materializa de modo tão explícito.