segunda-feira, dezembro 05, 2005

As Integrais do 1BSK

(Publicado originalmente a 31/7/2003.)

Takeshi Kitano (suite et fin).

"HANA-BI" (1997): Foi com este filme, consagrado no Festival de Veneza, e coberto de elogios entusiásticos, que Kitano se revelou em definitivo ao público ocidental. Compreende-se porquê. Sem ser um filme de abordagem fácil, "Hana-Bi" representa um expoente na arte, que Kitano cultiva, de combinar a representação da violência com uma poesia visual de assombrosa beleza, o que fornece ao filme o poder de apelar ao sentido estético e às emoções do espectador de maneira poderosa e isenta de mediação. Aparecendo pela primeira vez frente às câmaras depois do seu acidente (que deixou marcas evidentes no seu rosto, causando um défice de expressividade de que não deixa de se alimentar a composição da personagem), "Beat" Takeshi veste a pele de um polícia cuja atitude e trajectória destrutiva não são essencialmente diferentes das do protagonista de "Violent Cop", 8 anos antes, porém reinterpretadas à luz de um niilismo sereno, e da abundância de efeitos que a espartana economia de meios salva da auto-indulgência. Autêntica bíblia da contenção e da elipse, fértil em inesperadas invenções formais (em particular os notórios "raccords" com forte conteúdo significante, que se tornaram numa das imagens de marca do realizador), "Hana-Bi" representa o auge dessa obsessão kitaniana de se isolar do mundo dos homens, criando vazio à sua volta tanto do ponto de vista metafórico como literal, num movimento que, alheio ao mero solipsismo, se destaca com nitidez e tremenda intensidade, na sua evidência de reacção ao sofrimento e ao absurdo.

"O VERÃO DE KIKUJIRO" (1999): Como quem se diverte a defraudar as expectativas daqueles que esperavam, com mui cinéfila ansiedade, o novo filme do criador de "Hana-Bi", Kitano saiu-se com uma comédia ligeira, pacatamente on the road, que surpreendeu em especial todos aqueles que desconheciam a sua faceta extra-yakuza ("A Scene at the Sea", "Getting Any?"). Explorando o tema, tantas vezes glosado, do adulto que se vê obrigado a cuidar de uma criança que não esperava nem desejou, Kitano não deixa de dar largas a alguns dos tiques a que nos habituou anteriormente, como por exemplo a propensão para a elipse, para a redução de um evento ou episódio ao seu prólogo e às suas consequências, de tal forma que chega a maliciosamente pôr em causa a razão de ser e as virtudes da imagem-em-movimento. Pessoalmente, apesar de reconhecer que o burlesco agridoce de "O Verão de Kikujiro" chega a ser tocante, a espaços, e que resulta enquanto veículo para Kitano dar largas, de maneira benigna, à sua caudalosa veia cómica, considero que não faz parte das suas obras mais interessantes. Vejo este filme acima de tudo como uma pausa, que coincidiu com um momento delicado da carreira do realizador, atendendo ao muito que era esperado dele após a consagração. (O que não quer dizer, como é óbvio, que tenha sido um filme no qual ele se investiu menos do ponto de vista criativo.) É curioso notar que este foi o primeiro de uma série de quatro longas-metragens muito diferentes entre si do ponto de vista formal, o que parece denotar uma saudável tentativa de se desfazer da etiqueta de fazedor de filmes de gangsters.

"BROTHER" (2000): Primeiro filme de Kitano realizado na América, "Brother" parece claramente uma obra mal amada, por razões que me custam a entender. A alguma crítica especializada, com a impaciência que é seu apanágio, pareceu fazer espécie a insistência nalguns temas (violência, luta entre gangs, mudez sorumbática da personagem principal, pendor de auto-destruição); é bem sabido que não há maior pecado para um cineasta do que dar a impressão de fazer sempre o mesmo filme, mesmo que essa impressão se deva apenas a 2 ou 3 detalhes superficiais (se há coisa que nunca escape a uma certa crítica, são precisamente os detalhes superficiais...). Pelo que me toca, acho admirável a coerência de Kitano, e apreciei a maneira como, ao filmar pela primeira vez num ambiente estranho, se esforçou em reunir as condições para realizar o seu filme, em vez de procurar um pacífico e consensual meio termo entre duas culturas, motivado ou não pelas exigências de produtores, ou por requisitos de mercado. Como não ver, na contida e tranquila determinação de "Beat" Takeshi actor, a feroz obstinação de integridade de que todos os que seguem a sua carreira sabem Takeshi Kitano capaz? "Brother" é um filme negro, sujo, amargurado e desesperado, mas também indestrutivelmente honesto; desprovido do deslumbrante lirismo pictórico de "Hana-Bi", possui, contudo, algo que nem essa nem nenhuma das obras anteriores possuía: o sobressalto de esperança e calor humano, sob a forma da amizade que liga o protagonista ao seu brother in arms, e que se materializa, sob forma de penhor, para lá do último e fatal tiroteio.

"DOLLS" (2002): Sobre este filme escrevi já, com alguma demora, recentemente. Com vossa licença, para lá vos remeto.

"ZATOICHI" (2003): Este filme, já a entrar (se não erro) em fase de pós-produção, terá a curiosidade de ser a primeira reconstituição histórica de Kitano. O enredo gira em torno de um mestre de artes marciais. Para mais pormenores, sugiro a consulta deste site, que já aqui recomendei, e de onde, aliás retirei todas as imagens aqui apresentadas.