Epistolaria Monteirensis
(Publicado originalmente a 21/7/2003.)
Enquanto as condições logísticas, atmosféricas e temperamentais necessárias para escrever sobre "Vai-e-vem" teimam em não se reunir, decidi transcrever uma carta dirigida por J.C. Monteiro ao "Público", provavelmente em 1997 ou 1998 (por imperdoável lapso, esqueci-me de datar o recorte). Pessoalmente, acho-a deliciosa, sobretudo quando a imagino lida pela vozita e pela dicção inimitáveis do sr. João de Deus (cujos ensinamentos, a julgar pela maneira troglodita como são servidos os cones de gelado nos dias que correm, a poucos aproveitaram).Tratando-se de uma carta que foi publicada num diário de grande tiragem, julgo não estar a cometer nenhuma inconfidência.
«O jornal PÚBLICO insere na sua edição de 29 de Novembro uma notícia [com base em informação da agência Lusa] sobre alguns incidentes provocados pela minha pessoa, no âmbito de uma retrospectiva de alguns dos meus filmes, organizada pelo festival de cinema de Gijón.
Dado que a referida notícia não corresponde à inteira verdade dos factos, solicito a publicação das rectificações que se seguem.
Ao chegar a Gijón foi-me fornecido o catálogo do festival. Após leitura das sinopses, verifiquei que as mesmas não correspondiam aos filmes que havia feito. De aí, a pergunta: quem foi o imbecil que escreveu estes disparates?
Verifiquei que o filme "Le bassin de John Wayne" figurava no catálogo, apesar de eu não autorizar a sua passagem, pela razão simples de ainda não o ter visto.
Solicitei à direcção do festival que me fosse dada a possibilidade de proceder publicamente às rectificações julgadas necessárias para o que considero lesivo dos meus filmes. No dia seguinte, meia hora antes da projecção do filme intitulado "Recordações da Casa Amarela" (e não de "Le Bassin de John Wayne", conforme foi noticiado), dirigi-me para a cabine para acertar questões de projecção. Fui informado pelo projeccionista que alguns dos meus filmes haviam já passado num formato errado (1:1.66 em vez de 1:1.37). Foi possível proceder-se à correcção, pelo menos da imagem, dado que, no que diz respeito ao som, e atendendo a que a sala estava regulada para o sistema Dolby, não havia grande coisa a fazer. Já na sala, dirigi-me delicadamente aos espectadores, começando por lamentar não falar asturiano e prestando as minhas homenagens aos mineiros massacrados em 34 pelas tropas franquistas.
Afirmei, desdizendo o que vinha escrito numa das famigeradas sinopses, que nunca tinha tido conversas com Deus, que era um cineasta comunista "sui generis", etc. Admito que, a páginas tantas, a coisa azedou e que não terei dirigido palavras de grande afabilidade para o certame de Gijón e mesmo para o senhor primeiro-ministro da monarquia espanhola.
Nunca me dirigi em termos ofensivos a uma cidade que não conheço e na qual até descobri dois Rossini raríssimos.
Finalmente, não pedi desculpas a ninguém. Quem me conhece sabe-o perfeitamente.João César Monteiro - cineasta»
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