Popcorn Free Zone
(Publicado originalmente a 6/4/2003.)
Na sequência de um post de há alguns dias, e de uma troca de comentários com o Nuno Centeio do Espigas ao Vento, vou tentar esclarecer a minha posição a respeito do cinema de Hollywood e dos Óscares, sua reluzente ponta de lança.
O cinema americano pavoneia a sua hegemonia pelos ecrãs de todo o mundo, com excepções pontuais. Será isto inevitável? Sim e não. Sim, porque este é o resultado de um know-how, de maciços investimentos na indústria do entretenimento e de uma máquina de promoção e distribuição que levariam gerações a contrariar. Não, porque medidas de estímulo e protecção de indústrias de cinema local têm dado os seus frutos, um pouco por todo o mundo, revelando que é possível lutar contra a maré. O que é preciso compreender é que a preponderância do cinema Hollywoodita não é resultado de uma simples escolha do consumidor que, com a mesma naturalidade com que beberica uma Coca-Cola em vez de um Sumol de ananás, prefere o produto Made in Usa em lugar de uma qualquer alternativa ao seu dispor. O que se passa é que esta alternativa ou é escassa ou, na maior parte dos casos, nem sequer existe. Ninguém ignora que isto se deve essencialmente ao forte vínculo entre salas e grupos distribuidores apostados em escoar os seus produtos, o que leva a que apenas uma fatia diminuta (e de representatividade mais do que duvidosa) do cinema mundial seja acessível ao espectador médio. Quanto a liberdade de escolha, estamos conversados. Esta situação beneficia ainda da conivência activa de quase toda a comunicação social, que não só atribui infalível destaque às estreias de qualquer blockbuster vindo do outro lado do Atlântico, como veicula com regularidade novidades irrelevantes da vida privada das estrelas, o que funciona, com temível eficácia, como processo adicional de promoção de todo um sistema.
Nada disto constitui novidade, nada disto será excessivamente controverso. A pergunta fulcral que se coloca é: será que, independentemente da vertente comercial, o público fica bem servido do ponto de vista de qualidade e diversidade? A minha resposta é um categórico NÃO. Entendo que o cinema americano, independentemente das numerosíssimas obras-primas que produziu, tem sido de entre todos o mais poderoso agente de normalização estética de uma arte que ainda está tragicamente longe de realizar uma ínfima fracção do seu fabuloso potencial. Ao impor uma estreita latitude de matrizes narrativas, de códigos, de procedimentos, os estúdios americanos ditaram uma ideia de cinema que se globalizou a ponto de excluir filmes que àqueles fogem, de os remeter à condição de objectos não identificados, condenados à marginalização. Existirão muitas excepções, mas todas elas ou terão surgido num contexto muito específico, ou terão resultado de concessões aos cânones dominantes, mais ou menos evidentes. Peter Greenaway afirma para quem o quer ouvir que os mais celebrados realizadores americanos contemporâneos, por exemplo Scorsese, ainda estão a fazer aquilo que Griffith fazia. Concordo inteiramente. É por isso que não posso conter um sorriso quando se fala na "diversidade" do cinema americano. Diversidade, de acordo, mas sempre condicionada a credos e cadernos de encargos robustecidos à força de dólares; diversidade sob custódia, com trela e açaime, vigiada de perto, submetida à tradição, à etiqueta e aos ditames do custo-benefício. Assim como existe uma enorme variedade de gaivotas, mas também existem albatrozes, andorinhas, faisões, alces, escorpiões, varanos, ouriços, gorilas, mosquitos, pumas, protozoários...
Quanto aos Óscares (©, TM, e tudo o resto), mais não são do que a supremamente arrogante emanação de uma indústria auto-satisfeita, convencida de polarizar tudo aquilo que de bom e durável se faz em termos de cinema. A nomeação de "A Vida é Bela" para melhor filme surgiu, a este respeito, como um momento revelador para mim. Até aí, na minha inocência, eu acreditara que o Óscar para melhor filme premiava necessariamente uma obra em língua inglesa, e que o prémio para melhor filme estrangeiro seria algo como um condescendente "Best of the Rest". Afinal, comprovava-se que aquelas alminhas acreditam estar a distinguir anualmente o melhor de entre todos os filmes estreados na área de Los Angeles, independentemente da língua.
Outra ocasião epifânica aconteceu quando o grande vencedor da noite foi "American Beauty". De certa maneira, é mais penoso ver triunfar um filme com pretensões do que uma baboseira destinada a acompanhar a ingestão e digestão de pipocas, e a ser esquecida em menos tempo do que se leva a dizer "Gladiador"; sobretudo quando tal decisão é aclamada como uma vitória do cinema de autor... Pessoalmente, considero que "American Beauty" está para o verdadeiro cinema (chamemos-lhe ou não "de autor", isso seria outra discussão) como o Ricky Martin está para a world music. Trata-se de uma historieta com o mérito de pôr dedos nalgumas feridas, mas que revela incapacidade de ir além de um propósito caricatural inconsistente e irrelevante, condimentado por tiradas embaraçosas sobre a beleza de um saco de plástico ao vento.
Dizem-nos e repetem-nos (a começar por João Lopes, crítico que aliás eu deveras admiro) que há que evitar simplismos e maniqueísmos quando se discutem as problemáticas do cinema, nomeadamente o confronto EUA/Europa ou EUA/Resto do Mundo. Eu sou contra maniqueísmos de qualquer espécie; contudo, também sou contra a insistência em edulcorar e minimizar situações como a que descrevi, que põem em causa o cinema enquanto arte e espaço de criação, e que, levadas ao extremo, conduzem à invisibilidade (na melhor das hipóteses) ou à negação da credibilidade de filmes e cineastas que ousam a diferença, a não reconciliação. É por isso que sou contra os Óscares. É por isso que sustento que este problema envolve uma componente de luta e de resistência que não pode ser escamoteada.
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