domingo, setembro 04, 2005

Rainer Werner Fassbinder, "Cuidado Com Essa Puta Sagrada"

(Publicado originalmente a 6/4/2003.)

Uma equipa de filmagem espera por dinheiro e pelo realizador. O dinheiro não chega, o realizador sim, mas demonstra ser parte do problema em vez de parte da solução (para usar uma terminologia em voga). Vindo de quem vem, o contrário é que seria surpreendente: para Fassbinder, as relações humanas (mais do que qualquer abstracta noção de "natureza humana") são o problema, e a sociedade uma bojuda arca de Pandora tão grande quanto for necessário, e excessivamente rica em nichos e fundos falsos. A crónica dos conflitos e tensões entre homens e mulheres condicionados por um momento da história, por um microcosmos social ou pelo preconceito sempre foi o tema predominante da obra de Fassbinder. No caso presente, a harmonia parece irromper da sua própria impossibilidade: o filme sempre se faz, a cena do assassinato protagonizada por Eddie Constantine produzirá o efeito desejado. Desengane-se, porém, quem vê uma nota optimista, devidamente ataviada de "ordem arrancada ao caos", no desenlace que se segue a tudo o que de gratuitamente violento, vulgar e tumultuoso este filme contém. A sardónica autópsia do sucesso de um filme que tudo tinha para naufragar revela, com convicção e autoironia fundidas numa só arma de arremesso, o drama irresolúvel de Fassbinder, que era o de procurar um Absoluto tenso e velhaco, escondido entre a trama densa das interacções entre seres e temperamentos, de preferência muito fortes ou muito fracos, quando lhe faltava a fé e a paciência para os Absolutos solenes e bem soantes de que a época gosta.

Este é ainda um filme com o aliciante de contar no seu elenco com Margarethe von Trotta, Werner Schroeter (muito jovem, de chapéu negro) e Magdalena Montezuma. São consumidas mais cuba libres do que em qualquer outra longa-metragem da história. Os zooms selvagens e a toada de improvisação funcionam como apologia de um cinema cru, mas refinado na sua espontaneidade festiva. Fassbinder realizou 28 filmes em 13 anos. "Cuidado com essa Puta Sagrada" ajuda a compreender tanto a sua importância como o facto de da sua carreira não constarem obras-primas.