segunda-feira, dezembro 05, 2005

Por Um Punhado de Yens

(Publicado originalmente a 31/7/2003.)

No Japão, Takeshi Kitano é conhecido sobretudo como comediante e apresentador de concursos acéfalos. Mal acomparado, à escala portuguesa, seria um pouco como se o Carlos Ribeiro realizasse filmes e ganhasse o Leão de Ouro em Veneza. Dá arrepios, não dá?

"Beat" Takeshi é tão famoso na sua terra que faz publicidade aos mais variados produtos, e até aparece em cartões de telefone...

As Integrais do 1BSK

(Publicado originalmente a 31/7/2003.)

Takeshi Kitano (suite et fin).

"HANA-BI" (1997): Foi com este filme, consagrado no Festival de Veneza, e coberto de elogios entusiásticos, que Kitano se revelou em definitivo ao público ocidental. Compreende-se porquê. Sem ser um filme de abordagem fácil, "Hana-Bi" representa um expoente na arte, que Kitano cultiva, de combinar a representação da violência com uma poesia visual de assombrosa beleza, o que fornece ao filme o poder de apelar ao sentido estético e às emoções do espectador de maneira poderosa e isenta de mediação. Aparecendo pela primeira vez frente às câmaras depois do seu acidente (que deixou marcas evidentes no seu rosto, causando um défice de expressividade de que não deixa de se alimentar a composição da personagem), "Beat" Takeshi veste a pele de um polícia cuja atitude e trajectória destrutiva não são essencialmente diferentes das do protagonista de "Violent Cop", 8 anos antes, porém reinterpretadas à luz de um niilismo sereno, e da abundância de efeitos que a espartana economia de meios salva da auto-indulgência. Autêntica bíblia da contenção e da elipse, fértil em inesperadas invenções formais (em particular os notórios "raccords" com forte conteúdo significante, que se tornaram numa das imagens de marca do realizador), "Hana-Bi" representa o auge dessa obsessão kitaniana de se isolar do mundo dos homens, criando vazio à sua volta tanto do ponto de vista metafórico como literal, num movimento que, alheio ao mero solipsismo, se destaca com nitidez e tremenda intensidade, na sua evidência de reacção ao sofrimento e ao absurdo.

"O VERÃO DE KIKUJIRO" (1999): Como quem se diverte a defraudar as expectativas daqueles que esperavam, com mui cinéfila ansiedade, o novo filme do criador de "Hana-Bi", Kitano saiu-se com uma comédia ligeira, pacatamente on the road, que surpreendeu em especial todos aqueles que desconheciam a sua faceta extra-yakuza ("A Scene at the Sea", "Getting Any?"). Explorando o tema, tantas vezes glosado, do adulto que se vê obrigado a cuidar de uma criança que não esperava nem desejou, Kitano não deixa de dar largas a alguns dos tiques a que nos habituou anteriormente, como por exemplo a propensão para a elipse, para a redução de um evento ou episódio ao seu prólogo e às suas consequências, de tal forma que chega a maliciosamente pôr em causa a razão de ser e as virtudes da imagem-em-movimento. Pessoalmente, apesar de reconhecer que o burlesco agridoce de "O Verão de Kikujiro" chega a ser tocante, a espaços, e que resulta enquanto veículo para Kitano dar largas, de maneira benigna, à sua caudalosa veia cómica, considero que não faz parte das suas obras mais interessantes. Vejo este filme acima de tudo como uma pausa, que coincidiu com um momento delicado da carreira do realizador, atendendo ao muito que era esperado dele após a consagração. (O que não quer dizer, como é óbvio, que tenha sido um filme no qual ele se investiu menos do ponto de vista criativo.) É curioso notar que este foi o primeiro de uma série de quatro longas-metragens muito diferentes entre si do ponto de vista formal, o que parece denotar uma saudável tentativa de se desfazer da etiqueta de fazedor de filmes de gangsters.

"BROTHER" (2000): Primeiro filme de Kitano realizado na América, "Brother" parece claramente uma obra mal amada, por razões que me custam a entender. A alguma crítica especializada, com a impaciência que é seu apanágio, pareceu fazer espécie a insistência nalguns temas (violência, luta entre gangs, mudez sorumbática da personagem principal, pendor de auto-destruição); é bem sabido que não há maior pecado para um cineasta do que dar a impressão de fazer sempre o mesmo filme, mesmo que essa impressão se deva apenas a 2 ou 3 detalhes superficiais (se há coisa que nunca escape a uma certa crítica, são precisamente os detalhes superficiais...). Pelo que me toca, acho admirável a coerência de Kitano, e apreciei a maneira como, ao filmar pela primeira vez num ambiente estranho, se esforçou em reunir as condições para realizar o seu filme, em vez de procurar um pacífico e consensual meio termo entre duas culturas, motivado ou não pelas exigências de produtores, ou por requisitos de mercado. Como não ver, na contida e tranquila determinação de "Beat" Takeshi actor, a feroz obstinação de integridade de que todos os que seguem a sua carreira sabem Takeshi Kitano capaz? "Brother" é um filme negro, sujo, amargurado e desesperado, mas também indestrutivelmente honesto; desprovido do deslumbrante lirismo pictórico de "Hana-Bi", possui, contudo, algo que nem essa nem nenhuma das obras anteriores possuía: o sobressalto de esperança e calor humano, sob a forma da amizade que liga o protagonista ao seu brother in arms, e que se materializa, sob forma de penhor, para lá do último e fatal tiroteio.

"DOLLS" (2002): Sobre este filme escrevi já, com alguma demora, recentemente. Com vossa licença, para lá vos remeto.

"ZATOICHI" (2003): Este filme, já a entrar (se não erro) em fase de pós-produção, terá a curiosidade de ser a primeira reconstituição histórica de Kitano. O enredo gira em torno de um mestre de artes marciais. Para mais pormenores, sugiro a consulta deste site, que já aqui recomendei, e de onde, aliás retirei todas as imagens aqui apresentadas.

As Integrais do 1BSK

(Publicado originalmente a 29/7/2003.)

Considero Takeshi Kitano um dos poucos cineastas realmente significativos que se revelaram nos últimos 10 ou 15 anos. Por isso, e aproveitando também a estreia recente da sua última longa-metragem ("Dolls") entre nós, escolhi-o para iniciar esta nova rubrica, que se quer ao mesmo tempo homenagem, esboço de intervenção crítica e visita guiada pela filmografia do autor.

"VIOLENT COP" (1989): Inicialmente, Kitano deveria ser apenas actor neste filme. A indisponibilidade do realizador, contudo, acabaria por levá-lo a assumir as rédeas do filme, e a assinar aqui a primeira obra da sua filmografia. Para me servir de um termo de comparação retirado do imaginário ocidental, "Violent Cop" pode ser visto como um "Dirty Harry" nipónico, minimalista, directo nos meios e na brutalidade, mas ao mesmo tempo oblíquo na sua absoluta recusa de qualquer vestígio de estatuto de paladino do Bem para o seu anti-herói. A animosidade da personagem principal (um inspector da polícia) contra a criminalidade pequena e grande, contra a crueldade e a corrupção humana, é obstinada, monótona, intensa, desprovida de altos e baixos, e alheia a qualquer veleidade de melhorar o mundo. A este estado de espírito adequa-se a repetitiva estrutura do filme, marcada por longas sequências que mostram Kitano caminhando, simplesmente, na rua, como que isolado de qualquer destino e de qualquer propósito. "Violent Cop" é um filme que anuncia todos os outros, apresentando temas e obsessões que Kitano teria oportunidade de trabalhar mais tarde com outra liberdade criativa.


"JUGATSU/PONTO DE EBULIÇÃO" (1990): Primeiro filme 100% pessoal de Kitano, "Jugatsu" constitui uma excepção na sua obra na medida em que ele aparece como actor (usando o pseudónimo pelo qual é mais conhecido no Japão, "Beat" Takeshi) num papel secundário. Em todas as outras suas obras, Kitano ou não participa como actor ou é protagonista principal. "Jugatsu" impressiona pela maneira como, tão cedo na sua carreira, o cineasta manipula já com tanta segurança os meios ao seu dispor, a ponto de construir um espectáculo sumptuoso onde o argumento e o refinado tratamento das imagens se conjugam naquilo que apetece ver como uma reflexão sobre uma obra por vir. Explico-me: na sua lógica, algures entre sonho, visão e aspiração da personagem principal (um jovem apático, que penetra quase por acaso no universo dos gangsters), "Jugatsu" integra diversos elementos dos filmes subsequentes (os yakuza, o desporto, a praia, a violência gratuita) num todo que apenas o burlesco, o absurdo e o inverosímil sustentam, na maior das precariedades. E é precisamente esta gritante fragilidade do conjunto que salienta o papel e a função de cada um dos elementos, e a sua importância na duvidosa coesão do edifício. Como se Kitano precisasse de adquirir confiança a este respeito, projectando na ordem do hipotético aquilo que, em obras subsequentes, apareceria como realidade sólida, inescapável, sem fissuras.É também em "Jugatsu" que pela primeira vez se nota outra das imagens de marca de Kitano: a coexistência da beleza mais sublime com a mais crua violência (inesquecível, a sequência da arma escondida no meio do ramo de flores).

"A SCENE AT THE SEA" (1991): Um jovem surdo-mudo; a sua namorada, também surda-muda; ele trabalha na recolha do lixo; um belo dia, encontra uma prancha de surf no lixo; o seu sonho é tornar-se surfista e participar em competições; conseguirá? Os ingredientes parecem reunidos para uma pessegada sentimentalona. Mas com Kitano atrás da câmara, como é evidente, sentimentalismo é a última coisa que se poderia esperar. Com uma contenção absoluta, Kitano alcança a proeza de ao mesmo tempo contar uma história simples e poderosa de dignidade e proceder a uma profunda reflexão visual sobre a relevância ética de elementos fílmicos básicos, em particular o plano, que 99,9% dos filmes tomam como um banalíssimo dado adquirido, e que aqui percebemos ser o veículo que exprime e define a realidade das relações humanas nas suas vertentes mais simples: ausência, presença, distância.


"SONATINA" (1993): Na minha pessoalíssima opinião, o melhor e mais coerente filme de Kitano. Entre dois períodos onde predomina a violência, encontramos os yakuza do costume perdidos numa praia remota, sem nada para fazer. É o momento dos jogos, mais ou menos perigosos, numa terrível dilatação do tempo em que o lúdico e o comezinho ocupam a concavidade deixada pela súbita ausência de barbárie. Quanto mais se assemelha a um gentil período de recreio, mais a fatalidade parece obscena. Passa algum tempo até que nos apercebamos de que, nessa solarenga suspensão do enredo, aquilo que mais angustia é a naturalidade com que aceitamos a ausência de alternativas. Nada há a fazer a não ser aguardar a retoma da violência. Nada, a não ser, precisamente, ocupar o tempo, e isto é tão válido para aqueles dias de lazer roubados à fatalidade como para o próprio tempo do filme, imitando a vida na sua obsessiva necessidade de ser preenchida, seja com o que for. Para evitar o vazio, tudo é legítimo, até campeonatos de sumo na areia.

"GETTING ANY?" (1995): Nunca vi este. Relata quem viu que nesta comédia, deliberadamente alarve, "Beat" Takeshi dá largas à faceta de comediante que o popularizou no seu Japão natal. O mau gosto, a vulgaridade e o burlesco têm lugar de honra. Dificilmente exportável, presume-se. Não posso dizer que morra de desejo de o ver; porém, Kitano já nos deu múltiplas razões para merecer o benefício da dúvida.

"KIDS RETURN" (1996): Primeiro filme depois do grave acidente de motorizada que deixou Kitano com uma paralisia facial parcial. As recordações que guardo deste filme são muito vagas. Na maneira como aborda a vulnerabilidade e volubilidade da juventude, aparece como um gémeo de "Jugatsu", mais sombrio e realista.

CONTINUA AMANHÃ (OU PROXIMAMENTE, EM TODO O CASO). Faz-se tarde, e tenho ainda de transmitir um recado do colega Ponziani.

Epistolaria Monteirensis

(Publicado originalmente a 21/7/2003.)

Enquanto as condições logísticas, atmosféricas e temperamentais necessárias para escrever sobre "Vai-e-vem" teimam em não se reunir, decidi transcrever uma carta dirigida por J.C. Monteiro ao "Público", provavelmente em 1997 ou 1998 (por imperdoável lapso, esqueci-me de datar o recorte). Pessoalmente, acho-a deliciosa, sobretudo quando a imagino lida pela vozita e pela dicção inimitáveis do sr. João de Deus (cujos ensinamentos, a julgar pela maneira troglodita como são servidos os cones de gelado nos dias que correm, a poucos aproveitaram).Tratando-se de uma carta que foi publicada num diário de grande tiragem, julgo não estar a cometer nenhuma inconfidência.

«O jornal PÚBLICO insere na sua edição de 29 de Novembro uma notícia [com base em informação da agência Lusa] sobre alguns incidentes provocados pela minha pessoa, no âmbito de uma retrospectiva de alguns dos meus filmes, organizada pelo festival de cinema de Gijón.

Dado que a referida notícia não corresponde à inteira verdade dos factos, solicito a publicação das rectificações que se seguem.

Ao chegar a Gijón foi-me fornecido o catálogo do festival. Após leitura das sinopses, verifiquei que as mesmas não correspondiam aos filmes que havia feito. De aí, a pergunta: quem foi o imbecil que escreveu estes disparates?

Verifiquei que o filme "Le bassin de John Wayne" figurava no catálogo, apesar de eu não autorizar a sua passagem, pela razão simples de ainda não o ter visto.

Solicitei à direcção do festival que me fosse dada a possibilidade de proceder publicamente às rectificações julgadas necessárias para o que considero lesivo dos meus filmes. No dia seguinte, meia hora antes da projecção do filme intitulado "Recordações da Casa Amarela" (e não de "Le Bassin de John Wayne", conforme foi noticiado), dirigi-me para a cabine para acertar questões de projecção. Fui informado pelo projeccionista que alguns dos meus filmes haviam já passado num formato errado (1:1.66 em vez de 1:1.37). Foi possível proceder-se à correcção, pelo menos da imagem, dado que, no que diz respeito ao som, e atendendo a que a sala estava regulada para o sistema Dolby, não havia grande coisa a fazer. Já na sala, dirigi-me delicadamente aos espectadores, começando por lamentar não falar asturiano e prestando as minhas homenagens aos mineiros massacrados em 34 pelas tropas franquistas.

Afirmei, desdizendo o que vinha escrito numa das famigeradas sinopses, que nunca tinha tido conversas com Deus, que era um cineasta comunista "sui generis", etc. Admito que, a páginas tantas, a coisa azedou e que não terei dirigido palavras de grande afabilidade para o certame de Gijón e mesmo para o senhor primeiro-ministro da monarquia espanhola.

Nunca me dirigi em termos ofensivos a uma cidade que não conheço e na qual até descobri dois Rossini raríssimos.

Finalmente, não pedi desculpas a ninguém. Quem me conhece sabe-o perfeitamente.João César Monteiro - cineasta»

O 1BSK Recomenda

(Publicado originalmente a 20/7/2003.)

Numa pesquisa rápida que efectuei sobre Kitano, deparei com um excelente site (em francês) sobre este realizador e actor japonês, contendo centenas de magníficas imagens dos seus filmes, programas televisivos, aparições em festivais, "making of", etc. Altamente recomendável.

Cinema

(Publicado originalmente a 20/7/2003.)

"Dolls", de Takeshi Kitano. Como sucede com todos os autores realmente significantes, cada filme de Kitano representa um momento de uma perpétua interrogação sobre a natureza do cinema, e sobre aquilo que distingue um filme de uma (mais ou menos hábil) justaposição de cenas, ideias, nacos de diálogo, piruetas narrativas. Em "Dolls", assistimos a um fascinante esforço de resgate de elementos que a brutalidade de um destino, à maneira de enxurrada, tenderia a arrastar consigo, num movimento que se identificaria com a própria aniquilação da possibilidade de cinema. Ao procurar reparar o irreparável (a loucura da mulher que ele abandonou, ao aceitar um casamento de conveniência), a principal personagem masculina não visa outra coisa senão subtrair alguém ao império do Absoluto, do sofrimento e da dor sem limites, que nenhuma mediação poderá mitigar; e fá-lo da única maneira possível, ou seja, tentando reinstalar a sua amada nesse mundo do Relativo onde a felicidade é possível, ainda que duvidosa; onde as pessoas estabelecem laços no tempo e no espaço, que por vezes, mas apenas por vezes, se traduzem em peripécias e enredos. Se esse caminho de regresso fosse coroado de sucesso, o resultado poderia ou não ser um filme; do óbvio malogro, Kitano faz uma solene aproximação à irredutível omnipresença da dor. À falta de um vínculo, à falta do vínculo que a sua leviandade comprometeu para sempre, a corda de que o homem se serve para amarrar um ao outro os corpos de ambos é mais do que uma desesperada artimanha, ou um mero dispositivo de segurança: é a própria materialidade do filme, o penhor da sua existência, o patético mas necessário sucedâneo de uma relação que nunca o será, e que concentra, em negativo, a totalidade das narrativas possíveis, todas elas nado-mortas, cada uma delas uma pequena porta para um matiz diferente de felicidade, com o seu estado de coisas associado, assim como imagens e sons.

Parece-me ainda que, deste ponto de vista, os dois episódios anexos (o yakuza que reencontra a sua amada da juventude num banco de jardim, e a cantora que sofre um acidente) funcionam, mau grado os seus desfechos trágicos como uma discreta vingança contra a funesta esterilidade da não-história principal. Como se o seu poder fecundador, ainda que debilitado, fosse suficiente para engendrar (e ilustrar) situações de argumento independentes, graças unicamente à proximidade física.

Quanto à intensidade estética de algumas das cenas, que chega a roçar o dificilmente tolerável, a única coisa que se me ocorre dizer é que, para quem conhece "Hana-bi", tais extremos de beleza surgem como algo que se toma quase como garantido, vindo de quem vem. Mas sem que tal prejudique a fruição.

Nem uma palavra a respeito das marionetas. Mencioná-las, e à tradição japonesa do bunraku, obrigaria a uma laboriosa construção de pontes até à outra margem, que seria a de Kleist e a de um certo ensaio... A delicadeza da tarefa leva-me a desistir da tarefa. Fim do post.

Cinema

(Publicado originalmente a 9/7/2003.)

"Mischka", de Jean-François Stévenin. O aspecto mais fascinante deste filme é a maneira como o próprio tempo da acção, idas e vindas, desencontros e vicissitudes servem de matéria prima para a consolidação de laços, num processo brusco e atabalhoado que coloca ao mesmo nível o parentesco, o acaso puro e simples, e uma espécie de fatalismo difuso e benigno, ligeiro como a França estival, entregue aos turistas, ao calor e ao "chassé-croisé" nas autoestradas. A demanda parece ser a razão de ser dos itinerários das personagens, mas o reencontro tão esperado aparece como um momento deliberadamente demasiado frouxo para servir de ponto de inflexão ou desenlace de um fluxo de peripécias que adquiriu solta e humaníssima autonomia, e que tanto poderia cessar ali mesmo, quando a película acaba, como durar mais um par de horas, ou confundir-se com a vida. Tudo isto num ambiente tão copiosamente franco-francês, libertário e "Copains d'abord" que quase se consegue sentir o aroma a Camembert, cidre doux e rillettes.

À sua maneira, e mau grado o meu cepticismo relativamente à expressão, "Mischka" é mesmo um "hino à vida". Tinhas razão, Nuno!

É importante assinalar que Jean-François Stévenin tem feito carreira essencialmente como actor, tendo participado em nada menos de três filmes de Rivette: "Out 1", "Merry-Go-Round" e "Le Pont du Nord".

A Não Perder Amanhã na RTP2

(Publicado originalmente a 7/7/2003.)

"Jugatsu/Ponto de Ebulição", um dos mais brilhantes filmes de Takeshi Kitano. Para variar, "Beat" Takeshi faz de gangster, mas desta vez com enfeites na cabeça.

Bis Repetita Placent

(Publicado originalmente a 3/7/2003.)

Pela segunda vez em 43 anos, depois de Gillo Pontecorvo, um italiano causa indignação por causa de um "Kapo". Hoje, como então, impõe-se uma rivetteana vontade de apontar o dedo a abjecções e indignidades.

Os Meus 5 Filmes Preferidos de Wim Wenders

(Publicado originalmente a 1/7/2003.)

A propósito do que aqui foi escrito há dias sobre "O Estado das Coisas", aqui segue, para vosso gáudio e recreação, a lista dos meus 5 filmes preferidos de Wim Wenders.

"Movimento em Falso"(1974): Espécie de "Gata Borralheira" dos seus filmes do "período da errância", esta é uma obra que parece comprazer-se em acumular as fragilidades, as vulnerabilidades desfraldadas como bandeiras de papel a meia haste. Não só não existe "história", como a possibilidade de uma qualquer narrativa capaz de concentrar elementos díspares num todo com sentido se esgota ao ritmo de cada respiração e passo em frente. E porém, o final sugere (com a devida contenção elíptica) a inevitabilidade de uma situação em que o gesto possui significado, e que do seu malogro ou do seu sucesso dependem a realização do ser e do grupo (a palavra "felicidade" exigiria uma atmosfera menos rarefeita para ser pronunciada). As recordações que guardo deste filme são, apropriadamente, ténues e escassas. Este foi o primeiro filme de Nastassja Kinski.

"Ao Correr do Tempo"(1975): A força desta obra resulta da maneira como combina o seu estatuto de súmula das ideias cinematográficas de Wenders com um despojamento e liberdade que diluem a gravidade dos filmes anteriores e que, conjugados com a invulgarmente longa duração e com alguns detalhes engenhosos (a começar pelo genérico), fazem deste um trabalho de uma ousadia formal empolgante. Rüdiger Vogler (um dos mais subvalorizados actores do cinema europeu) e Hanns Zischler são notáveis. Um capítulo fecha-se com abundância melancólica de imagens e de diacronia, sem que inesperados momentos de euforia deixem de ocorrer. O filme seguinte seria "O Amigo Americano". Go west, my friend...

"O Estado das coisas"(1982): Sobre este já disse que chegue. Insisto apenas no seu papel charneira, baliza de um período em que, após as homenagens explícitas ("Lightning Over Water", "Hammett"), Wenders integra numa ficção a reflexão sobre as imagens, os seus meios de produção, emprego e fruição e a sua relação com a evolução das sociedades.
"As Asas do Desejo"(1987): Verboso, impossivelmente belo, este filme consagra as núpcias da palavra, da imagem, da história e do sonho num todo que se quer encruzilhada e ponte entre o passado e algo que Wenders pareceu querer perseguir a partir de então, mas sem que os seus contornos e matizes alguma vez se tenham tornado definidos. O problema de como filmar o inefável num contexto eminentemente terreno (Berlim na sua evidência material, deselegante, cindida, suja) é resolvido com uma melancolia barroca absolutamente nova na filmografia deste realizador, vagamente mórbida na maneira como explora, ao mesmo tempo que a edifica, uma fronteira entre história e irrealidade. A colaboração com Peter Handke é um sucesso comparável em importância às duplas Resnais/Robbe-Grillet, Resnais/Duras e Oliveira/Agustina.

"The End of Violence"(1997): Na minha opinião pessoal, a única ocasião pós-"Asas do Desejo" em que Wenders soube dar corpo a um objecto cinematográfico consistente e digno do seu talento. Sem ser um filme de tese, todo ele se articula em torno da resposta a uma questão («O que é a violência?»), e a esse ímpeto de abstracção corresponde uma obra admiravelmente coerente em termos de ideias e soluções narrativas. Um comentário aos tempos e costumes que não esconde (e é isso que faz a sua força) essa sede de imagens e situações, e essa proximidade relativamente às pessoas que desde cedo sustentaram a vontade de fazer cinema deste realizador.

Dois Falecimentos no Cinema

(Publicado originalmente a 1/7/2003.)

Mais pelo acaso das frequências cinéfilas do que por qualquer predisposição negativa, conheci pouquíssimos filmes onde tenha entrado Katharine Hepburn. Não tendo, para além disso, nenhuma opinião sobre aquilo que ela simbolizou ou não na sua longa carreira, limito-me a assinalar o seu desaparecimento com tristeza. Não posso deixar de notar a inevitável abundância de referências, nos obituários e referências da comunicação social, a essa suposta "idade de ouro" Hollywoodiana em relação à qual sou mais que céptico. Mas deixemos estas farpas para outras ocasiões mais apropriadas.Muito mais despercebida passou a notícia do falecimento de Jean-Claude Biette. (Aliás, dela só tive conhecimento graças ao programa de Julho da Cinemateca.) Notável crítico nos "Cahiers du Cinéma" e na "Trafic", Biette realizou também meia-dúzia de longas metragens. Aquela que, tanto quanto sei, foi a derradeira ("Trois Ponts sur la Rivière", parcialmente passada em Portugal) foi trazida às nossas salas por Paulo Branco. Recordá-lo-ei sobretudo por um outro dos seus filmes, o tocante e original "Le Champignon des Carpathes", feliz memória cinéfila da Cinémathèque dos Grands Boulevards, Paris.aa 22:38