terça-feira, agosto 30, 2005

(Publicado originalmente a 30/3/2003.)

Que melhor maneira de passar um sábado chuvoso do que numa sala escura onde alguém teve a boa ideia de exibir um filme de Fassbinder?Comentários ao filme propriamente dito ficam para outro dia. Pra já pra já, como dizia o Orlando Dias Agudo, contento-me com um desabafo perante a ocorrência de um intervalo nas sessões do Cine Paraíso (ao Largo Camões). Um intervalo para quê? Para ir ao buffet dessedentar-se? Para ser visto nos corredores por quem vem para ver quem vem para ser visto? Para ver quem primeiro faz a pergunta sacramental («Então, estás a gostar?») que, desde 1895, tantas idas ao cinema arruinou?Mas nem tudo são agruras. No Nimas, os lugares deixaram de ser marcados!

De Robert a Sandrine em 3 etapas (2/3)

(Publicado originalmente a 27/3/2003.)

É Desnos quem dá o nome, da maneira mais oblíqua que se possa conceber, à segunda longa metragem realizada por Pascal Bonitzer, "Rien Sur Robert". Bonitzer é um dos habituais argumentistas dos filmes de Jacques Rivette, o que, só por si, o torna digno de louvor, estima, respeito e atenção (para além de um ror de medalhas e de um lugarzinho algures num ventrículo dos cinéfilos deste mundo). É ele também o autor de um livro consagrado a Éric Rohmer que é uma das mais notáveis obras sobre cinema que alguma vez passou pelas minhas mãos.

No filme em questão, nenhuma personagem se chamava Robert, e o título provém da resposta que recebe o próprio realizador (numa fugaz aparição como actor), numa livraria parisiense: «Nous n'avons rien sur Robert Desnos». Bonitzer insinua-se, deste modo, na altamente recomendável companhia de Boris Vian, que, diz-se, chamou a um dos seus romances "O Outono em Pequim" porque não se passava em Pequim e não tinha nada a ver com estações.

Josée Dayan, "Cet Amour-Là"

(Publicado originalmente a 24/3/2003.)

O menos relevante deste filme é precisamente aquilo a que ele parece resumir-se: a paixão entre o jovem Yann Andréa e a envelhecida Marguerite Duras. O idílio é sublimado na sucessão átona dos episódios que a nenhuma história a dois podem faltar (embaraço inicial, ruptura, reconciliação, querelas de território, declínio), na permanência das imagens do verão húmido da Bretanha fazendo lembrar quadros marítimos de Nicolas de Staël, em tudo aquilo (e é muito, e é perecível) cujo esplendor mate oferece carácter a este filme. Este amor, imprevisto mas assimilado, como que recua para ceder lugar a algo que dele nasce, mas que no mesmo instante o ultrapassa e percorre a matéria do filme como um frémito: falo da contaminação de um discurso por outro; dessa presença esguia e masculina que contraria a resignação de uma escritora à solidão e ao seu caudal de palavras, e da necessidade de enfrentar palavras de sedução que ela talvez preferisse confinadas às bocas de Anne-Marie Stretter e do vice-cônsul; falo de membros que acrescentam à mortalidade o facto de caminharem para a morte; falo de lábios e do gosto do vinho.Aquele amor conteve o seu quinhão de felicidade, partilhado por aqueles que o viveram. Talvez a lição deste filme seja a constatação de que, para além da transiência desse júbilo, nada mais existe nem existiu. Nem Marguerite foi egéria, nem Yann foi Galateia; a paixão não engendrou um fenómeno de continuidade; ao génio sucederam as mediocridades da morte e da vida. Aquilo que de amargo tem esta verdade é também aquilo que de profundo e de útil este filme nos deixa.

Stephen Daldry, "The Hours"

(Publicado originalmente a 24/3/2003.)

Este filme engoda-nos com uma edénica conciliação entre a diacronia corriqueira da flecha do tempo, por um lado, e a promessa de epifanias sincrónicas adequadamente inseridas numa matriz de secular procura da felicidade. Quem considera, como o autor destas linhas, que nenhum esforço artístico honesto tem o direito de se furtar a esse fulcro da natureza humana que é a sede de significados, não pode negar um gesto de aprovação perante um filme cujo tema único parece ser uma aspiração pela plenitude capaz de saltitar de geração para geração com a agilidade de uma moviola. O que falha, pois, em "The Hours"? Essencialmente, isto: da subversão prometida no início nada resta, afinal, a não ser algumas bruscas elipses e raccords mais ou menos engenhosos. Cada destino pessoal joga-se na bem comportada sequência de factos, sucessos, coisas e estações; cada segmento dramático respeita convenções e códigos com uma robustez do mais louvável que há (veja-se o suicídio do poeta, veja-se a cena na plataforma da gare entre Virginia e Leonard); nem os milagres, nem os vórtices, nem as caixas azuis lynchianas se repetem.

Que mais? Meryl Streep é prodigiosa no alento dramático e na contenção, Julianne Moore é prodigiosa no orgulho resignado e na contenção, Nicole Kidman é prodigiosa na agreste impenetrabilidade anglo-inglesa e na contenção; pela enésima vez, o cinema americano expõe aos olhos do mundo a sua falta de à vontade com o génio, rejeitado, na melhor das hipóteses, à condição de neurose peso-pluma (tivesse Foucault visto "A Beautiful Mind", e alguma coisa de interessante teria daí saído, palpita-me); foi uma boa coisa que os Óscares (©, TM) não tenham consagrado esta obra, para que ninguém se iluda com fantasias de abertura a um cinema mais adulto por parte de Hollywood, como sucedeu aqui há anos com "American Beauty" (filme bem mais insignificante e apalermado do que este, de resto).

(Publicado originalmente a 23/3/2003.)

Hou Hsiao-Hsien, Tsai Ming-Liang, Wong Kar-Wai, Abbas Kiarostami, Andrei Sokurov, Aleksei German, Otar Iosseliani, Nanni Moretti, Mario Martone, Éric Rohmer, Jean-Luc Godard, Jacques Rivette, Jean Eustache, Maurice Pialat, Anne-Marie Miéville, Alain Cavalier, Victor Erice, Manoel de Oliveira, João César Monteiro, Pedro Costa, Peter Greenaway, Derek Jarman, Lars von Trier, Aki Kaurismäki, Agnès Varda, Chantal Akerman, Jean-Luc Godard, Danièle Huillet, Jean-Marie Straub, Jacques Rozier, Jean-Luc Godard, Philippe Garrel, Claire Denis, Alain Guiraudie, Arnaud Desplechin, Jean-Luc Godard, JEAN-LUC GODARD, Rainer Werner Fassbinder, Rudolf Thome, Béla Tarr, Theo Angelopoulos, Takeshi Kitano, Nobuhiro Suwa, Nagisa Oshima, Jane Campion, Raul Ruiz, David Lynch, Hal Hartley, Stan Brakhage, Michael Snow, Jon Jost, Abel Ferrara.

Em tempo de Óscares (©, TM), interessa cerrar fileiras, e evocar, em jeito de litania, alguns daqueles que são ou foram responsáveis pela criação cinematográfica genuinamente independente, e marcada pela aspiração de fazer do cinema mais do que uma bem comportada manifestação audiovisual, subserviente face a interesses comerciais e a ditames estéticos impostos pela tradição ou pelo ar do tempo, coarctada pela obrigação de agradar a um leque de públicos tão vasto quanto possível.

Atenção, uma cerimónia de entrega de prémios pode esconder outra

(Publicado originalmente a 22/3/2003.)

Os Óscares estão para o cinema assim como a secção de livros do Jumbo está para a literatura.

The title without the name?

(Publicado originalmente a 13/3/2003.)

Dos cartazes de promoção do novo filme de João Botelho não consta o nome do realizador. Negligência ou sinal dos tempos?

(Publicado originalmente a 11/3/2003.)

Prometo solenemente oferecer o seu peso em caramelos ao distribuidor que traga para Portugal o filme de Alain Corneau "Stupeur et Tremblements". Isto apenas porque gostava muito de ouvir a Sylvie Testud falar em japonês.

Os que ainda vivem saúdam-te

(Publicado originalmente a 11/3/2003.)

Decepcionante, a notícia/obituário dedicada à morte de João César Monteiro nos "Cahiers du Cinéma". O autor, Stéphane Bouquet, começa por admitir que se esqueceu quase por completo dos filmes de Monteiro, o que, para uma revista que nunca regateou elogios ao realizador, é no mínimo bizarro. Nenhuma menção é feita ao seu último filme ainda por estrear. Para cúmulo, enganam-se na data do óbito (foi a 3 de Fevereiro, e não a 8). Independentemente de uma ou outra questão de pormenor, contudo, o que mais desconsola é um certo comedimento que parece desajustado à grandeza e à sublime originalidade de Monteiro. Impõe-se a comparação com Pialat, cujo desaparecimento mereceu reacções muito mais copiosas. Admita-se, contudo, que, em termos da influência, directa ou indirecta, na sua geração e nas seguintes, a figura de Pialat assume uma estatura imensamente mais significativa do que a de Monteiro (que não deixará herdeiros - e poderia ser de outro modo?). Desse ponto de vista, compreende-se a disparidade. Ainda assim...

Abbas Kiarostami, "10"

(Publicado originalmente a 4/3/2003.)

Ainda a quente, pouco tempo após o visionamento, eis as minhas primeiras reacções ao filme "10", de Kiarostami.Os caminhos que Kiarostami tinha vindo a escolher, nos últimos anos, embora representassem uma aposta na depuração e na economia de meios, não apontavam necessariamente para a demonstração de arte pobre que é este filme. Uma câmara,um carro e actores: eis os ingredientes de "10". E é tudo? Não, não é tudo. Defendo que todo o sentido, toda a portentosa legitimidade da obra de Kiarostami residem na convicção de que os elementos de um filme vulneráveis à descrição, os pólos que sustentam enredos, determinações geográficas ou sociais, motivações, não são mais do que a escada que nos ajuda a saltar o muro, e que perde o interesse uma vez alcançado o topo, esquecida em favor do inebriante panorama de pomares, estradas, colinas. Ou seja, e concretizando: no caso de "10", a extrema parcimónia dos meios induz no espectador atento, à míngua de pontos de apoio, essa disposição de procurar o "algo mais" onde se move o cinema de Kiarostami, essa região tensa de significados, ao mesmo tempo ascética e sensual, corriqueira e perpétua inimiga do senso comum, essa província que outros cineastas preferem ignorar, por falta de meios, falta de vontade, falta de talento ou falta de coragem. Deploro que a comunicação entre o cinema mais clássico (leia-se: aquele que chega às nossas salas) e o cinema dito de vanguarda ou experimental seja tão pobre, para não dizer quase inexistente. Perante "10", não pude deixar de pensar em "Beauty #2", de Warhol, no qual o plano fixo ultrapassa o seu estatuto de dispositivo cinematográfico para se transformar num interveniente, e não dos menos tirânicos ou manipuladores. Em "10", é certo, existe mais do que o plano fixo, e tanto a gestão do campo e do contracampo como as elipses temporais (já para não falar do perpétuo traveling que decorre do andamento da viatura) são inteligentemente utilizados ao serviço do fluxo dramático do filme (que existe, se bem que deliberadamente rarefeito). Porém, o constrangimento dos discursos e das atitudes, consequência do confinamento, é algo de comum a ambos os filmes. Parece-me que este apetite pela exploração de um limite funciona aqui como tentativa de colocar em evidência um aspecto específico da arte cinematográfica em que Kiarostami, manifestamente, acredita, ao contrário de tantos dos seus pares e daqueles que lhes concedem semanalmente o seu beneplácito, por meio de recensões tíbias e contentinhas.De tudo o que acima se lê não se conclua que eu recomendaria "10" para um primeiro contacto com a obra de Kiarostami. Por menos disposto que eu esteja a defender que este filme exibe como único trunfo uma radicalização rebarbativa, acredito firmemente que obras fundamentais como "Através das Oliveiras" ou "O Vento Levar-nos-á" (para não mencionar "Close-Up", simplesmente um dos filmes fulcrais das últimas décadas) constituirão uma escolha mais frutuosa.

Este blog destina-se a acolher, por ordem cronológica, os textos sobre cinema, da minha autoria, que têm vindo a ser publicados no Umblogsobrekleist (tanto na versão antiga como na sua encarnação mais recente), desde Março de 2003.

Os textos serão publicados tal qual, eventualmente com menoríssimas alterações ou adendas, ou com alterações do título.

Pelo menos numa primeira fase, neste blog não serão publicados textos originais.