domingo, setembro 04, 2005

Popcorn Free Zone #2

(Publicado originalmente a 13/4/2003.)

Prossegue o interessante ping-pong verbal com o Nuno Centeio do Espigas ao Vento.

Como é evidente, a minha animosidade contra as pipocas dirige-se essencialmente ao seu estatuto de símbolo, e à sua associação com um conceito de exibição comercial de filmes hiper-estandardizado e massificado, e que atribui forte ênfase à componente de entretenimento, com o qual não me identifico. (Isto para não falar no cheiro, que não aprecio, nem do deplorável estado em que fica o chão da sala após uma sessão concorrida, nem no ruído masticatório que se acrescenta aos sussurros inoportunos e aos telemóveis tocando ao desafio.) Contudo, importa salientar que não é minha atenção menorizar ou negar legitimidade à vertente mais lúdica e convivial do cinema. Muito pelo contrário. Sou fervoroso adepto da coexistência pacífica de todas as correntes e tendências do fenómeno audiovisual (esta parece tirada do discurso do ministro da tutela...), e é precisamente por isso que considero que vale a pena batermo-nos para que o cinema possua condições para realizar o seu riquíssimo potencial artístico. O que se passa hoje em dia, claramente, é uma progressiva intolerância, por parte dos circuitos de distribuição que desfrutam de uma situação de quase-monopólio, por parte de uma certa opinião pública, por parte de uma certa crítica, contra as veleidades autoristas que teimam em manifestar-se, sobretudo quando provêm de realizadores da nossa praça, e sobretudo se financiados, directa ou indirectamente, pelo contribuinte. Por um lado, isto é compreensível, na medida em que produzir um filme custa muito dinheiro; na literatura e na pintura, o problema coloca-se de maneira muito menos aguda. Mais preocupante é quando se extrapola, com a ligeireza que é apanágio de muita da nossa comunicação social, de um problema estritamente económico para o terreno das considerações estéticas, o que tem como resultado quase inevitável a estigmatização daquele que porfia em levar ao ecrã as suas ideias pessoais em vez de se conformar a cânones e modas. (Para reconhecer à distância este tipo de discurso, basta procurar a expressão "torre de marfim", que nunca deixa de ocorrer nestas ocasiões, com fatalidade crónica.) É contra isto que eu me insurjo.

Em resumo: nada tenho contra um cinema essencialmente lúdico. Não existe incompatibilidade de raiz entre entretenimento e inteligência, tal como pude confirmar ainda recentemente, ao rever um filme ("Groundhog Day", "O Feitiço do Tempo") que é um magnífico divertimento e ao mesmo tempo um subtil e permanente desafio à atenção do espectador. Porém, desta constatação até à defesa de que existe um contínuo entre os filmes de James Bond e "Andrei Rubliov" (já para não falar de Stan Brakhage, Jonas Mekas, Michael Snow...) vai um grande passo. Aqui há tempos, eu seria capaz de concordar com tal afirmação. Hoje, estou convencido de que existe algures entre estes dois extremos uma fractura que nem à custa de boa vontade, muita Araldite e bocadinhos de arame é possível disfarçar; e que, para lá dessa fronteira, existem províncias da criação cinematográfica que não se prestam à assimilação, e que nos forneceram muito do que de belo e duradouro se filmou desde que os irmãos Lumière pousaram a sua câmara na gare de La Ciotat. E é por isso que exalto, antes de todos os outros, aqueles que personificam essa fractura e que a traduzem numa atitude de não reconciliação: o casal Huillet/Straub, Pialat, Monteiro, Godard, Moretti, Cavalier, Kitano, e alguns outros. E é por isso que expressões como "verdadeiro cinema" surgem de vez em quando naquilo que escrevo; que me sejam relevadas em nome da importância que este cavalo de batalha assume para mim. No fundo, isto mais não é do que uma simples questão de vocabulário. Chamemos-lhe "cinematógrafo" (Bresson), "sétima arte" ou "xpto"; pouco importa, desde que lhe seja concedido o elementar direito de existir.

A respeito das cerimónias de entregas de prémios, mantenho que, dos Óscares aos BAFTA, passando por Césares e outros Goyas, mais não são do que campanhas de promoção e bem comportada auto-celebração das indústrias cinematográficas nacionais. Prémios atribuídos pela crítica dever-se-iam revestir de um outro interesse, mas, sintomaticamente, acabam na maior parte dos casos por respeitar as escolhas dos profissionais do cinema.

Para além disso, os vestidos e toilettes dos actores e actrizes que participam nessas cerimónias são, nove em cada dez vezes, simplesmente horrorosos, como se resultassem de uma campanha minuciosamente orquestrada para desfear aqueles que a natureza mais generosamente dotou.