domingo, setembro 04, 2005

Federico Fellini, "Fellini's Casanova"

(Publicado originalmente a 27/4/2003.)

Federico Fellini era um dos pouquíssimos realizadores (fraca colheita em mais de 100 anos de história) cujo impulso criativo assumia a componente pictórica muito para além da sua mera vertente ilustrativa: não apenas como uma mais-valia a explorar, de maneira mais ou menos engenhosa, mais ou menos eficaz, mas como a própria essência do cinema, manancial de possibilidades, veículo de imaginários e celebrações. Pelo menos desde "La Dolce Vita" (mas de forma mais convicta a partir de "Giulietta degli Spiriti"), os filmes de Fellini passaram a consistir essencialmente em colecções de imagens que, autonomizando-se relativamente ao elemento diegético, sublimam-no numa realidade que, à falta de melhor termo, poderíamos designar por "supra-história". Vinhetas, episódios, farrapos de enredo, desfilam como números de circo, ao sabor da digressão, da memória, da procura do efeito cómico, do supérfluo. O seu "Casanova" é disto tudo um dos exemplos mais belos e eloquentes, e ao mesmo tempo um dos seus filmes onde a solidez do fio condutor mais palpável se torna, por entre o bricabraque acrónico e difuso de imagens e situações excessivas, inverosímeis, saturadas de burlesco acanalhado. Para além das fabulosas aventuras de Giacomo Casanova, é o clamoroso malogro de uma mundividência que tentava conciliar as proezas de amante magnífico com a erudição humanista que Fellini conta em imagens. Nenhuma ideia, descendência ou transcendência sobrevive à carreira de Casanova: somente a tristíssima realidade do ciclo único de pujança e decadência; somente a banalmente inevitável condição humana, que acrescenta a sua duradoura e muda tensão aos cumes e vales narrativos transpostos ao longo das décadas e da Europa. A derradeira cena (a dança com a boneca mecânica) pode ser vista como um sonho ou como um episódio autêntico, milimetricamente alheado da catadupa de memória, facto e bravata que o antecedeu. Não consigo, em todo o caso, deixar de pensar nela como uma última homenagem e vingança, um instante singular de consonância que é também a coisa mais sublime que nos oferece este filme sublime.