terça-feira, setembro 20, 2005

O Que Há Num Rosto?

(Publicado originalmente a 3/5/2003.)

O rosto habita o plano, e algo de perverso se insinua nessa sua promessa de terceira dimensão. A boca culpa-se por existir, mas ao tempo pavoneia-se nos Grandes Boulevards, e é com um suspiro que evoca penhores de admiração e reflexões no espelho sujeitas à corrupção. Não falarei dos olhos. Sobretudo, esconderei as palavras sobre os olhos num fundo falso sem forro de veludo nem verosimilhança. O rosto lembra-se do corpo, e enrubesce. O inevitável pincel do inevitável artista abdica. O que é mostrado enterra o punhal na ferida aberta tantas vezes por segundo. A afinidade com o olhar é também uma história de ruptura, dos atentados do tempo que a pele absorve na sua matriz e exibe com um pudor agreste, trocista.Emmanuelle Devos nasceu em 1964. Seria manifesto abuso, desde logo, inseri-la numa qualquer vaga categoria de "novas actrizes" do cinema francês. Revelada essencialmente graças aos filmes de Arnaud Desplechin (em especial "Comment Je Me Suis Disputé... (Ma Vie Sexuelle)"), Devos tem passeado a sua figura singular, intensa e relutante, os seus olhos, cintilantes de risonha insolência, o seu radioso talento e a sua desconcertante versatilidade (de "vamp" a eterna adolescente fragilizada) por um cinema francês abundante em presenças femininas carismáticas. Em Portugal, vimo-la recentemente em "Esther Kahn" (a bailarina exótica que rivalizava com a protagonista no plano amoroso) e em "L'Adversaire" (a amante de Daniel Auteuil).A notícia da estreia do filme "Sur Mes Lèvres" em Lisboa é uma boa notícia. O filme em si (um "thriller" envolvendo uma deficiente auditiva, engenhoso a espaços, quase sempre eficaz) será tudo menos um festim cinéfilo, e o embaraçoso desempenho de Vincent Cassel num papel de ex-presidiário seria, em princípio, um poderoso argumento dissuasor. Mas a presença da grande EMMANUELLE pesa mais na balança. Melhor ainda: é ela própria a balança, e a espada, e o gabinete de Pesos e Medidas que tem por missão calibrar a balança, e também a respiração e o movimento que tudo isto sublimam.