quarta-feira, novembro 02, 2005

Cinema

(Publicado originalmente a 16/6/2003.)

"O Estado das Coisas", de Wim Wenders. Ao ver este filme, compreende-se tudo. Compreende-se a importância de Wenders como personalidade que funcionou como caixa de ressonância de tendências, frustrações e melancolias de uma época do cinema (mais do que de uma "geração"); compreende-se a sua identificação estreita com o paradigma da errância (o fascínio passivo pelo movimento, sempre "em falso", como sucedâneo, ao mesmo tempo hipnótico e terra a terra, das grandes narrativas de que o cinema do passado, em especial o americano, se apropriou); compreende-se, enfim, a inevitabilidade da evolução da sua carreira, rumo a um estatuto de "referência moral" do cinema europeu, paciente divulgador de desencantos, raro híbrido de diletante e estóico. A abdicação de uma qualquer veleidade de se tornar um Grande Realizador conhece aqui mais um dos seus intermináveis actos, nas dunas de uma praia portuguesa. A singularidade deste belo e subtil filme será talvez a maneira como alberga um esboço de "ars poetica" que aparece como contrapartida, longínqua e desiludida, do projecto que Godard enuncia em "Pierrot le Fou": filmar, não as pessoas, não as histórias, mas aquilo que existe entre elas, as relações, os predicados, essa espessura traduzível em claro-escuro e, bem entendido, na dolorosa passagem do tempo. Que resta deste filme, que dura o quanto baste para que se escoe qualquer vestígio de elemento redentor? Trocas de afectos. Sons e suspiros. Farrapos de futuro. E também, claro, o olhar da câmara.

O 1BSK errou

(Publicado originalmente a 11/6/2003.)

O nosso leitor Francisco Frazão assinalou um erro num post de ontem. Mencionámos um certo "Charles Daney", quando, como é óbvio, o verdadeiro nome do malogrado crítico e ensaísta é Serge Daney. Pelo lapso, imputável à senilidade que progride a largas passadas, as nossas desculpas. Com leitores tão atentos, dá gosto fazer umblog.

Primeiro, a biografia

(Publicado originalmente a 10/6/2003.)

Jacques Rivette nasceu a 1 de Março de 1928, em Rouen, cidade que abandonará em 1949. Em Paris, Rivette envolveu-se com o grupo que viria a fundar a mítica revista "Cahiers du Cinéma": Truffaut, Godard, Rohmer, Jacques Doniol-Valcroze, Charles Bitsch... Leitor e cinéfilo voraz, Rivette viria a distinguir-se pela firmeza e profundidade das suas críticas cinematográficas, ao ponto de adquirir a reputação de intelectual entre os seus pares da "Nouvelle Vague", o que, convenha-se, tem o seu quê de notável.

Tal como os seus cúmplices, Rivette passou à realização durante a década de 50; ao contrário daqueles, não beneficiou de nenhum estado de graça por parte do público, e a sua primeira longa-metragem, "Paris Nous Appartient", foi um fracasso estrondoso. Ao longo dos anos que se seguiram, Rivette prosseguiu uma carreira de realizador em que o sucesso de audiências raramente acompanhou o reconhecimento crítico. A sua aura de personalidade enigmática, pouco dada à exposição mediática, justificada ou não, foi-se consolidando. Depois de uma década de 70 complicada, em termos quer artísticos quer pessoais, Rivette participou do segundo fôlego da "Nouvelle Vague" nos anos 80 e 90, com obras-primas como "L'Amour par terre", "La bande des quatre", "La belle noiseuse" e "Haut bas fragile", ou o mais recente "Va savoir". Paralelamente, a sua faceta de prolífico e penetrante pensador sobre a natureza do cinema foi encontrando ocasiões para se manifestar, nomeadamente através de entrevistas e de um excelente documentário-conversação com Charles Daney, filmado por Claire Denis.

E agora, cinema!

(Publicado originalmente a 10/6/2003.)

O nosso leitor Francisco Frazão teve a amabilidade de nos escrever, com palavras simpáticas sobre o blog, e sobre as (muito esporádicas) referências que temos feito ao realizador Jacques Rivette.

Agradecemos o comentário e a atenção, e também o excelente pretexto para passarmos a discorrer de maneira mais abundante sobre alguém que tem ocupado um lugar singularíssimo no panorama do cinema das últimas décadas, e que admiramos até à mais absurda desmesura.

(Publicado originalmente a 5/6/2003.)

«Creation, to me, is to try to orchestrate the universe to understand what surrounds us. Even if, to accomplish that, we use all sorts of stratagems which in the end prove completely incapable of staving off chaos.» (Peter Greenaway)

(Publicado originalmente a 2/6/2003.)

«...The note had been struck, she had responded to it, as she responded to every suggestion, faultlessly; she knew that she could repeat the note, whenever she wished, now that she had once found it. There would be no variation to allow for, the actress was made at last. She might take back her lover, or never see him again, it would make no difference. It would make no difference, she repeated, over and over again, weeping uncontrollable tears.»(Do filme "Esther Kahn", realizado por Arnaud Desplechin, argumento de Arnaud Desplechin e Emmanuel Bourdieu, adaptado de uma obra de Arthur Symons.)

Cinema (3)

(Publicado originalmente a 2/6/2003.)

"Los Lunes al Sol", de Fernando León de Aranoa. A estrutura deste muito conseguido filme espanhol imita a própria situação em que se encontram as personagens, desempregados de longa duração, cujo próprio estatuto de pessoa ameaça sofrer a erosão de um quotidiano onde nada acontece. O evento, a heterogeneidade na passagem do tempo, surge como iguaria rara, e, a esse respeito, é exemplar o estatuto da personagem principal (Javier Bardem, imenso na sua casmurra dignidade): apesar de, graças à sua personalidade, polarizar as existências dos seus colegas de infortúnio, é aos outros que acontecem as coisas (agradáveis ou funestas), exercendo ele o papel de observador, acólito carrancudo, ajudante ineficaz. A urgência da vida, os seus acasos felizes ou não, surgem como espasmos, tímidos e estranhos no seu isolamento; cabe ao cinema enquadrá-los numa dimensão temporal de amarga banalidade. Se a passagem do tempo é um processo áspero, a contemplação, as fantasias sobre a Austrália, as trocas de recriminações acerca de uma multa de 8 mil pesetas, tudo é lícito para diluir a melancolia. Mais precioso do que tudo isto, porém, é o simplicíssimo dom de estar lá. E é essa permanência, na sua vertente física e afectiva, que o cinema nos oferece com uma intensidade que nenhuma outra arte pode igualar.

Cinema (2)

(Publicado originalmente a 1/6/2003.)

"Peau d'Ange", de Vincent Pérez. Este é um filme descarada e retintamente francês, no fascínio evidenciado face à fragilidade dos seres, e na maneira como essa fragilidade é erigida em sujeito ficcional primeiro, com prioridade absoluta sobre trama, motivação, iniciação, zeitgeist, sociedade, futuro. Neste filme, que passou relativamente despercebido nas salas portuguesas, a fragilidade é repartida por duas personagens: a da jovem Morgane Moré, fatalmente vulnerável, na biografia como no semblante, e a de um Guillaume Depardieu que abandonou o romantismo malsão de "Pola X" como uma pele de cobra, instalando-se agora num registo de criatura marcada pela vida, que exacerba o seu cinismo para combater uma memória demasiado viva. A colisão efémera destes dois não-destinos exclui desde o início, de modo peremptório, qualquer perspectiva de um final que não seja trágico e doloroso. O percurso de ambos, ao sabor de acasos e bruscos assomos de motivação, desenrola-se em toada de cantata, à falta de gabarito digno de um hino.

Queria deixar uma nota final a respeito de uma sequência do filme, aparentemente tudo o que há de mais anódino. A jovem Angèle pergunta a uma religiosa se pode tomar conta do pequeno jardim (junto à prisão onde se encontra detida, suspeita de um crime que não cometeu). Em vez de resposta, surge o raccord para a cena seguinte, em que Angèle esgravata a terra do jardim. Esta sólida confiança no poder auto-explicativo da figura cinematográfica que substitui o elemento narrativo omitido (a resposta afirmativa da religiosa) é estarrecedora. A convicção de que o cinema pouco mais é do que uma tradução audiovisual de elementos narrativos convencionais predomina, nos dias de hoje, já se sabe; mas nem sempre a homenagem a tão redutor credo se materializa de modo tão explícito.

Cinema (1)

(Publicado originalmente a 1/6/2003.)

"Bowling for Columbine", de Michael Moore. Raras vezes terá sucedido que a discussão relativa aos méritos, atributos e pertinência de um filme tenha sido a tal ponto subalternizada em favor de picardias e trocas de galhardetes ideológicas, conjunturais, e também, valha a verdade, francamente nulas. Mesmo a discussão relativa ao real estatuto do filme (documentário ou ficção?) acabou por se esgotar em aspectos superficiais, inevitavelmente associados ao maior ou menor grau de manipulação dos factos e das situações, por parte de Moore. E o cinema no meio disto?Pessoalmente, não tenho dúvidas em qualificar "Bowling for Columbine" como uma ficção. Quando Moore entrevista o irmão do cúmplice do atentado de Oklahoma, a sua atitude perante os risíveis (mas inquietantes) desvarios do seu interlocutor é, a este respeito exemplar. Moore entrega-se (com evidente prazer) ao papel de entrevistador disposto a ser convencido, bonacheirão q.b.; os silêncios são cirurgicamente pesados para isolar, na sua atroz imbecilidade, a torrente de dislates que vão sendo ditos. Moore passeia, ao longo do filme, esta sua figura de "americano médio", e tira partido disso mesmo para inserir numerosas pepitas ficcionais, dotadas de unidade temporal, crescendo e desenlace, e que contribuem para a eficácia persuasiva do filme. Teria sido soberbo que esta interacção (mais subtil do que parece) entre postura documental e prática narrativa tivesse dado azo a debate menos viciado por querelas antigas ou modernas.

Quanto ao César de melhor filme estrangeiro, este foi, no mínimo, despropositado. Uma coisa é concordar com as ideias expressas (consistentes e bem defendidas, mau grado ocasionais laivos de simplismo e demagogia); outra, bem diferente, é transformar essa adesão num plebiscito que se desejaria estritamente baseado em critérios de excelência artística.