Cinema
(Publicado originalmente a 16/6/2003.)
"O Estado das Coisas", de Wim Wenders. Ao ver este filme, compreende-se tudo. Compreende-se a importância de Wenders como personalidade que funcionou como caixa de ressonância de tendências, frustrações e melancolias de uma época do cinema (mais do que de uma "geração"); compreende-se a sua identificação estreita com o paradigma da errância (o fascínio passivo pelo movimento, sempre "em falso", como sucedâneo, ao mesmo tempo hipnótico e terra a terra, das grandes narrativas de que o cinema do passado, em especial o americano, se apropriou); compreende-se, enfim, a inevitabilidade da evolução da sua carreira, rumo a um estatuto de "referência moral" do cinema europeu, paciente divulgador de desencantos, raro híbrido de diletante e estóico. A abdicação de uma qualquer veleidade de se tornar um Grande Realizador conhece aqui mais um dos seus intermináveis actos, nas dunas de uma praia portuguesa. A singularidade deste belo e subtil filme será talvez a maneira como alberga um esboço de "ars poetica" que aparece como contrapartida, longínqua e desiludida, do projecto que Godard enuncia em "Pierrot le Fou": filmar, não as pessoas, não as histórias, mas aquilo que existe entre elas, as relações, os predicados, essa espessura traduzível em claro-escuro e, bem entendido, na dolorosa passagem do tempo. Que resta deste filme, que dura o quanto baste para que se escoe qualquer vestígio de elemento redentor? Trocas de afectos. Sons e suspiros. Farrapos de futuro. E também, claro, o olhar da câmara.