terça-feira, setembro 20, 2005

Comentários ao Palmarés de Cannes

(Publicado originalmente a 26/5/2003.)

Sem ter visto nenhum dos filmes, limitamo-nos a comentar tendências. Independentemente dos filmes propriamente ditos, satisfaz-nos que o palmarés tenha sido ousado, avesso a conformismos, idiossincrásico. Não foram defraudadas as esperanças que depositávamos em Patrice Chéreau: sob a sua batuta, o júri deu à luz um quadro de premiados que foge à morna previsibilidade que tinha vindo a prevalecer, nos últimos anos. Não podemos deixar de evocar a entrega dos prémios do Festival de 1999, em que, sob a presidência de um David Cronenberg cujo sorriso malicioso nunca o abandonou, dois filmes resolutamente contra a corrente ("Rosetta" e "L'Humanité") açambarcaram as principais distinções, para escândalo dos profissionais do cinema, cuja indignação corporativista chegou a raiar o ridículo. Quanto a Greenaway, saiu com as mãos vazias. Outra coisa não seria de esperar. Seria necessária uma qualquer conjunção astral inverosímil (ou então, que o júri fosse composto por clones do João Lopes) para que se decidissem a prestar alguma atenção àquilo que diz e filma o autor the "The Tulse Luper Suitcases". Aquilo que posso garantir é que um tal esquecimento não o fará perder nem sono, nem quilogramas, nem seguidores.

24 Vezes Por Segundo

(Publicado originalmente a 26/5/2003.)

Os comentários recentes do "Abrupto" sobre cinema francês geraram um mini-debate blogosférico (onde tomaram parte ainda o "De Esquerda" e o "Espada Relativa"). Dizem que se deve malhar no ferro enquanto este está quente; porém, infelizmente, o volume de trabalho tem sido incompatível com a taxa de libertação de calor do ferro, por isso é com algum atraso que volto a abordar este tema que tanto me diz. Algumas notas soltas, tão somente.

1) A origem da reputação de profundidade (com ou sem aspas, para o caso tanto dá) filosófica do cinema francês não é clara, mas tudo indica que emana da geração dos "Cahiers du Cinéma" e da Nouvelle Vague, cujas principais figuras (Truffaut, Rohmer, Godard, Rivette, Doniol-Valcroze, Douchet) possuíam uma apetência muito forte para a teorização da coisa cinematográfica, na esteira da influente personalidade de André Bazin. Esse esforço de teorização, não sendo "filosófico" no sentido estrito do termo, entrava em forte ressonância com a paisagem das ciências humanas francesas da época, e possuía uma profundidade e pujança intelectual absolutamente notáveis. No entanto, não é nada límpido estabelecer um elo entre esta fase da história da crítica cinematográfica e a praxis do cinema nas décadas subsequentes. Pessoalmente, defendo que a influência da Nouvelle Vague no cinema contemporâneo é bem menos importante do que alguns apregoam (quase sempre num propósito depreciativo), e que a propensão filosófica da geração actual de cineastas franceses não é mais nem menos forte do que noutros países. O que existe é a gravidade e a consciência de um cinema que se assume como um fenómeno artístico maior, que encontram eco numa crítica que não perdeu o hábito salutar de pensar o cinema, em lugar de se limitar a opinar sobre as virtudes e defeitos de um filme. É esta sinergia que, possivelmente, continua a alimentar, como uma chama sagrada, a ideia de um cinema francês pesadão, dado à reflexão, melancólico, umbilical, pretensioso.

2) Esses mesmos papas da Nouvelle Vague, envoltos na sua reputação de monges estilitas do cinema, de áridos e savonarolescos inimigos do cinema lúdico e divertido, foram responsáveis por obras plenas de ligeireza e de graça vaporosa: "Tirez sur le Pianiste", "Une Femme Est Une Femme", "Le Rayon Vert", "Va Savoir", "Adieu Philippine" (de Jacques Rozier, uma autêntica pérola), etc... etc...

3) A quase totalidade do cinema artisticamente relevante que se faz fora dos EUA faz-se, nos dias de hoje, com dinheiro francês. Isto não é apenas uma questão meramente comercial; é também uma ideia do cinema em acção.

Ainda Greenaway

(Publicado originalmente a 25/5/2003.)

Vasco Câmara, crítico do "Público" que merece respeito e crédito, escreve hoje acerca de "The MOAB Story": «(...) a primeira amostra do projecto é enciclopédica, voraz na acumulação de informação, citações (cita tudo, até Greenaway) e números, no estilhaçar do plano como unidade cinematográfica e na ausência de modéstia». Falta de modéstia? Seja. Se a profusão de ideias sobre o cinema e a Arte em geral, a vontade de as explorar de maneira coerente, criativa e ousada, a erudição, a articulação dos pontos de vista num discurso claro, incisivo e cáustico, a hiperactividade e a desmultiplicação em inúmeras actividades e projectos equivalem a presunção, então Greenaway é o mais imodesto dos cineastas, a anos-luz do medalha de prata.

Ecos da Croisette

(Publicado originalmente a 24/5/2003.)

Eurico de Barros comenta o filme de Peter Greenaway, "The Tulse Luper Suitcases - The MOAB Story", apresentado na Selecção Oficial do festival de Cannes: «(...)não passa de poeira para os olhos de "vanguardismo" laboratorial, repetitivo e estéril». Faltou falar do misantropismo terminal e da sobranceria, outras das críticas recorrentes que costumam ser dirigidas a Greenaway. Quanto a este vosso criado, e já que nenhum órgão da imprensa escrita me paga alojamento, viagem e ajudas de custo para ir à Côte d'Azur debitar inanidades, resta-me desejar que o vanguardismo laboratorial, com ou sem aspas, estreie rapidamente num cinema perto de mim. Estarei na quinta fila a contar do ecrã, sexta cadeira a contar da coxia do lado esquerdo, com um ou dois livritos de Kleist gentilmente tombados no regaço.

Cinema (2)

(Publicado originalmente a 19/5/2003.)

Escreve Pacheco Pereira no seu "Abrupto": «Uma das coisas que me faz ainda gostar mais do cinema americano e abominar a "excepção cultural" dos franceses é a capacidade que tem de manter o cinema como espectáculo e de tratar histórias complexas sem perder a complexidade. Porque imaginem o que a basófia filosófica dos franceses faria a histórias, como a do Blade Runner , do Matrix , ou do Minority Report , ou do Crash , ou as dos filmes de David Lynch transformando-as em filmes de tese , impossíveis de ver com prazer e perplexidade.». Claramente, não temos estado a ver os mesmos filmes franceses. A tendência predominante no cinema francês, pelo menos desde os anos 70, tem sido um naturalismo voltado para o quotidiano e para a exploração das relações pessoais (alcunhado depreciativamente de "cinema deux pièces cuisine"), cujos expoentes máximos são Maurice Pialat e Jacques Doillon, e cuja componente "filosófica" (mesmo entendida na sua acepção simplificada de "dada à reflexão sobre o mundo") é francamente ténue. Invertendo o sentido da especulação, não resisto a imaginar aquilo que faria o rolo compressor hollywoodesco de filmes como "Les Roseaux Sauvages", "La Reine Margot", "Conte d'Automne" ou "Ressources Humaines", para citar apenas alguns exemplos de obras relativamente recentes que obtiveram uma apreciável projecção no nosso país. Quanto à incompatibilidade entre filme "de tese" e "prazer", quem tem seguido este blog com um mínimo de regularidade sabe que ela não tem aqui direito de cidade.

Cinema (1)

(Publicado originalmente a 19/5/2003.)

Escreve Eurico de Barros sobre o filme "Les Égarés", de André Téchiné, apresentado recentemente em Cannes, que «...passa hora e meia a perseguir a própria cauda, enquanto Emmanuelle Béart faz cara de neura.». Palpita-me que vou gostar. Uma apreciação negativa de Eurico de Barros, sobretudo se lacónica e categórica, é das melhores recomendações que conheço.

Contagem Decrescente

(Publicado originalmente a 18/5/2003.)

Já só faltam 6-dias-6 para que o novo filme de Peter Greenaway seja exibido em Cannes!!!!!!

Rectificação

(Publicado originalmente a 9/5/2003.)

Mesmo com uma fractura exposta, irei ver o Garrel em Junho.

Cinemateca em Maio

(Publicado originalmente a 9/5/2003.)

Os destaques não são muitos. Diria mesmo que Maio será um mês algo morno. "I Confess" no dia 16. "The Hustler" já no dia 12. "East of Eden" no dia 19. E um Godard, mas não certamente um dos melhores ("Une Femme Est Une Femme"), no dia 30. Quanto ao ciclo Jacques Tourneur, o que me dissuade é a sensação de que, para ver só 2 ou 3, mais vale não ver nenhum. Para Junho, no entanto, o caso muda de figura, pois anunciam-nos um ciclo Philippe Garrel. Salvo em caso de afazeres inadiáveis, ou de uma fractura exposta, estarei plantado na Barata Salgueiro. Mais informações aqui.

O Que Há Num Rosto?

(Publicado originalmente a 3/5/2003.)

O rosto habita o plano, e algo de perverso se insinua nessa sua promessa de terceira dimensão. A boca culpa-se por existir, mas ao tempo pavoneia-se nos Grandes Boulevards, e é com um suspiro que evoca penhores de admiração e reflexões no espelho sujeitas à corrupção. Não falarei dos olhos. Sobretudo, esconderei as palavras sobre os olhos num fundo falso sem forro de veludo nem verosimilhança. O rosto lembra-se do corpo, e enrubesce. O inevitável pincel do inevitável artista abdica. O que é mostrado enterra o punhal na ferida aberta tantas vezes por segundo. A afinidade com o olhar é também uma história de ruptura, dos atentados do tempo que a pele absorve na sua matriz e exibe com um pudor agreste, trocista.Emmanuelle Devos nasceu em 1964. Seria manifesto abuso, desde logo, inseri-la numa qualquer vaga categoria de "novas actrizes" do cinema francês. Revelada essencialmente graças aos filmes de Arnaud Desplechin (em especial "Comment Je Me Suis Disputé... (Ma Vie Sexuelle)"), Devos tem passeado a sua figura singular, intensa e relutante, os seus olhos, cintilantes de risonha insolência, o seu radioso talento e a sua desconcertante versatilidade (de "vamp" a eterna adolescente fragilizada) por um cinema francês abundante em presenças femininas carismáticas. Em Portugal, vimo-la recentemente em "Esther Kahn" (a bailarina exótica que rivalizava com a protagonista no plano amoroso) e em "L'Adversaire" (a amante de Daniel Auteuil).A notícia da estreia do filme "Sur Mes Lèvres" em Lisboa é uma boa notícia. O filme em si (um "thriller" envolvendo uma deficiente auditiva, engenhoso a espaços, quase sempre eficaz) será tudo menos um festim cinéfilo, e o embaraçoso desempenho de Vincent Cassel num papel de ex-presidiário seria, em princípio, um poderoso argumento dissuasor. Mas a presença da grande EMMANUELLE pesa mais na balança. Melhor ainda: é ela própria a balança, e a espada, e o gabinete de Pesos e Medidas que tem por missão calibrar a balança, e também a respiração e o movimento que tudo isto sublimam.

domingo, setembro 04, 2005

Faz sentido!

(Publicado originalmente a 27/4/2003.)

Num inquérito realizado há vários anos pela revista "Time Out", Peter Greenaway incluiu "Casanova" na lista dos seus 10 filmes preferidos.

Federico Fellini, "Fellini's Casanova"

(Publicado originalmente a 27/4/2003.)

Federico Fellini era um dos pouquíssimos realizadores (fraca colheita em mais de 100 anos de história) cujo impulso criativo assumia a componente pictórica muito para além da sua mera vertente ilustrativa: não apenas como uma mais-valia a explorar, de maneira mais ou menos engenhosa, mais ou menos eficaz, mas como a própria essência do cinema, manancial de possibilidades, veículo de imaginários e celebrações. Pelo menos desde "La Dolce Vita" (mas de forma mais convicta a partir de "Giulietta degli Spiriti"), os filmes de Fellini passaram a consistir essencialmente em colecções de imagens que, autonomizando-se relativamente ao elemento diegético, sublimam-no numa realidade que, à falta de melhor termo, poderíamos designar por "supra-história". Vinhetas, episódios, farrapos de enredo, desfilam como números de circo, ao sabor da digressão, da memória, da procura do efeito cómico, do supérfluo. O seu "Casanova" é disto tudo um dos exemplos mais belos e eloquentes, e ao mesmo tempo um dos seus filmes onde a solidez do fio condutor mais palpável se torna, por entre o bricabraque acrónico e difuso de imagens e situações excessivas, inverosímeis, saturadas de burlesco acanalhado. Para além das fabulosas aventuras de Giacomo Casanova, é o clamoroso malogro de uma mundividência que tentava conciliar as proezas de amante magnífico com a erudição humanista que Fellini conta em imagens. Nenhuma ideia, descendência ou transcendência sobrevive à carreira de Casanova: somente a tristíssima realidade do ciclo único de pujança e decadência; somente a banalmente inevitável condição humana, que acrescenta a sua duradoura e muda tensão aos cumes e vales narrativos transpostos ao longo das décadas e da Europa. A derradeira cena (a dança com a boneca mecânica) pode ser vista como um sonho ou como um episódio autêntico, milimetricamente alheado da catadupa de memória, facto e bravata que o antecedeu. Não consigo, em todo o caso, deixar de pensar nela como uma última homenagem e vingança, um instante singular de consonância que é também a coisa mais sublime que nos oferece este filme sublime.

Croisette Blues

(Publicado originalmente a 26/4/2003.)

A divulgação da selecção oficial do Festival de Cannes deste ano trouxe uma desilusão e uma excitante confirmação. A desilusão foi a ausência de "Marie et Julien", um dos filmes perdidos de Jacques Rivette, cuja rodagem tinha sido interrompida nos anos 70, e que o realizador decidiu retomar mais de um quarto de século depois. A boa notícia foi a presença do primeiro filme do novo projecto de Peter Greenaway, "The Tulse Luper Suitcases" (que incluirá ainda duas outras longas metragens, para além de um CD Rom e de um prolongamento na Internet). O que mais me entusiasma neste novo trabalho de um criador que muito admiro é a nova aposta numa faceta documentarista e enciclopédica que nos deu obras primas como "The Falls", "A Walk Through H" ou "Vertical Features Remake", e que era dominante na obra de Greenaway antes de atingir a notoriedade internacional de que desfruta.

Resta desejar que o palmarés deste ano seja menos previsível do que nos dois anos passados: "Dancer in the Dark" e "La Stanza del Figlio" foram ambos favoritos do princípio ao fim do certame, e o galardão máximo parecia estar-lhes prometido desde muito cedo. A composição do júri de 2003 augura coisas boas: Patrice Chéreau não será por certo o homem menos indicado para fugir ao conformismo e protagonizar escolhas ousadas. Mas também é certo que, depois de Luc Besson, qualquer individualidade que fosse escolhida para presidente faria figura de génio.Mais informações sobre os filmes seleccionados aqui.

Paul Thomas Anderson, "Punch-Drunk Love"

(Publicado originalmente a 25/4/2003.)

O problema deste filme deixa-se descrever com mais facilidade do que as suas virtudes. E o problema deste filme é um esvaziamento do conflito que chega a parecer constituir a sua razão de ser. A não ser que o seu propósito seja muito específico (fazer rir, dar a conhecer uma situação), um filme implica um, ou mais, conflitos, e o relato ou ilustração das maneiras de o resolver. "Punch-Drunk Love" anuncia-se como um suculento naco de imaginário americano, ao qual não falta o underdog nem essa alienação redimível que tantos enredos tem propulsionado. Precisamente no momento em que os ingredientes parecem reunidos, e ainda por cima em doses não excessivamente canónicas, eis que o conflito é anulado sem estrondo nem fanfarra, à força de piparotes do argumento: o "inadaptado" apaixona-se sem precisar de se esforçar, e, o que é mais, a paixão dá-lhe a força para fazer frente às consequências de um seu pecadilho (sob a forma de quatro irmãos louros e violentos, oriundos do continente profundo). Tudo acaba por ser linear, óbvio, minimalista. Mas existe algo de fundamentalmente reprovável neste virtuosismo da facilidade. Nada tenho contra contos de fadas, desde que se abstenham de lançar pistas que depois são removidas como inócuos adereços: por exemplo, qual a origem das raivas destrutivas da personagem principal? (Claro que a resposta a esta pergunta não teria interesse, não fosse o filme servir-se deste e doutros elementos como alicerces para a sua construção dramática.) O que se aproveita deste filme? Não pouca coisa, a começar pela tónica de burlesco surrealista, admiravelmente servida por Adam Sandler. Se partilhássemos da opinião de que uma grande interpretação compensa um filme duvidoso, estaríamos conversados. Quanto a Emily Watson, para quando um papel digno do talento desta actriz a quem os anos oferecem mais do que retiram ou danificam? Pelo menos assim o pensa a América, que, desta vez, escreveu com tinta verde em vez de tinta violeta, como é seu costume. Lastimo-a, isolada do mundo, algures no Alto Alentejo, e privada das suas canetas preferidas. O tio da América (trocadilho involuntário) é viticultor, e tenciona retê-la até às vindimas.

Martin Scorsese, "Gangs of New York"

(Publicado originalmente a 16/4/2003.)

A América Nasceu nas Ruas: assim o proclama a promoção deste filme. Trabalho escusado será procurar, ao longo das duas horas e tal que este dura, argumentos a favor ou contra essa tese. A Rua é o lugar de todos os tumultos, de todas as manobras, de todas as redenções, mas não acolhe um desabrochar de sentimento nacional, de ideia ou consciência de país. A América sucede e emerge, sob a forma de convulsões da história de origem longínqua, sem esperar que o dédalo confuso das ruas de uma cidade lhe sirvam de cadinho, alheia ao feudo, às desrazões e ao sangue vertido em vão (entenda-se: sem contribuir para engordar a seta do tempo).

Mais do que o duvidoso engendrar da nação, "Gangs of New York" revela-nos a genealogia, os pecadilhos originais e a grandeza optimista de um cinema americano refém dos seus próprios códigos e do seu colossal sucesso, que, em vez de lhe dar segurança, o faz recear a novidade como um risco dispensável; um cinema condenado a reencenar constantemente a sua própria mitologia, sob pena de perder a fé em si mesmo. Um novo visionamento de "Life Lessons", esse precioso monumento da arte de fazer muito com pouquíssimo (Nolte e Arquette, pinceladas, Procol Harum, eis tudo), ajuda-nos a compreender que ninguém saiu vencedor da obstinação de Scorsese em levar a cabo este seu projecto. Mas seria isto uma fatalidade, atendendo à felicidade com que, no passado, ele lidou com a grandeza de meios ("New York New York", "Casino")? Mas também é verdade que, quase desde o início, a carreira cinematográfica de Scorsese se desenrolou na órbita desta questão opressiva: que farei sem Robert De Niro? (E reciprocamente.)

Pourquoi filmer une histoire, quand on peut l'écrire?

(Publicado originalmente a 14/4/2003.)

É com vergonha e lástima que me apercebo de que mencionei o Boulevard des Batignolles sem evocar as primeiras palavras do primeiro dos "Contes Moraux", de Rohmer ("La Boulangère de Monceau"):

«Paris, le Carrefour Villiers. A l'est, le boulevard des Batignolles avec, en fond, la masse du Sacré-Cœur de Montmartre. Au nord, la rue de Lévis et son marché, le café «Le Dôme» faisant angle avec l'avenue de Villiers, puis, sur le trottoir opposé, la bouche de métro Villiers, s'ouvrant au pied d'une horloge, sous les arbres du terre-plein, aujourd'hui rasé.»

Já não existe, a padaria que se situava na esquina entre a Rue de Lévis e a Rue Lebouteux.

(Publicado originalmente a 13/4/2003.)

Apraz-me deveras registar o artigo do Ivan no blog A Memória Inventada sobre a nova geração de actrizes francesas. Sobre a grande KIBERLAIN já eu disse (por enquanto!) aquilo que tinha a dizer. Tanto Élodie Bouchez (revelação de "Les Roseaux Sauvages") como Virginie Ledoyen (que era uma das "8 Femmes") merecem também encómios e longas horas de devoção platónica. Outros nomes incontornáveis são os de Natacha Régnier, Sylvie Testud, Julie-Marie Parmentier, Isild Le Besco e Emmanuelle Devos, esta última um caso único de filmogenia e personalidade de que voltarei a falar.

Popcorn Free Zone #2

(Publicado originalmente a 13/4/2003.)

Prossegue o interessante ping-pong verbal com o Nuno Centeio do Espigas ao Vento.

Como é evidente, a minha animosidade contra as pipocas dirige-se essencialmente ao seu estatuto de símbolo, e à sua associação com um conceito de exibição comercial de filmes hiper-estandardizado e massificado, e que atribui forte ênfase à componente de entretenimento, com o qual não me identifico. (Isto para não falar no cheiro, que não aprecio, nem do deplorável estado em que fica o chão da sala após uma sessão concorrida, nem no ruído masticatório que se acrescenta aos sussurros inoportunos e aos telemóveis tocando ao desafio.) Contudo, importa salientar que não é minha atenção menorizar ou negar legitimidade à vertente mais lúdica e convivial do cinema. Muito pelo contrário. Sou fervoroso adepto da coexistência pacífica de todas as correntes e tendências do fenómeno audiovisual (esta parece tirada do discurso do ministro da tutela...), e é precisamente por isso que considero que vale a pena batermo-nos para que o cinema possua condições para realizar o seu riquíssimo potencial artístico. O que se passa hoje em dia, claramente, é uma progressiva intolerância, por parte dos circuitos de distribuição que desfrutam de uma situação de quase-monopólio, por parte de uma certa opinião pública, por parte de uma certa crítica, contra as veleidades autoristas que teimam em manifestar-se, sobretudo quando provêm de realizadores da nossa praça, e sobretudo se financiados, directa ou indirectamente, pelo contribuinte. Por um lado, isto é compreensível, na medida em que produzir um filme custa muito dinheiro; na literatura e na pintura, o problema coloca-se de maneira muito menos aguda. Mais preocupante é quando se extrapola, com a ligeireza que é apanágio de muita da nossa comunicação social, de um problema estritamente económico para o terreno das considerações estéticas, o que tem como resultado quase inevitável a estigmatização daquele que porfia em levar ao ecrã as suas ideias pessoais em vez de se conformar a cânones e modas. (Para reconhecer à distância este tipo de discurso, basta procurar a expressão "torre de marfim", que nunca deixa de ocorrer nestas ocasiões, com fatalidade crónica.) É contra isto que eu me insurjo.

Em resumo: nada tenho contra um cinema essencialmente lúdico. Não existe incompatibilidade de raiz entre entretenimento e inteligência, tal como pude confirmar ainda recentemente, ao rever um filme ("Groundhog Day", "O Feitiço do Tempo") que é um magnífico divertimento e ao mesmo tempo um subtil e permanente desafio à atenção do espectador. Porém, desta constatação até à defesa de que existe um contínuo entre os filmes de James Bond e "Andrei Rubliov" (já para não falar de Stan Brakhage, Jonas Mekas, Michael Snow...) vai um grande passo. Aqui há tempos, eu seria capaz de concordar com tal afirmação. Hoje, estou convencido de que existe algures entre estes dois extremos uma fractura que nem à custa de boa vontade, muita Araldite e bocadinhos de arame é possível disfarçar; e que, para lá dessa fronteira, existem províncias da criação cinematográfica que não se prestam à assimilação, e que nos forneceram muito do que de belo e duradouro se filmou desde que os irmãos Lumière pousaram a sua câmara na gare de La Ciotat. E é por isso que exalto, antes de todos os outros, aqueles que personificam essa fractura e que a traduzem numa atitude de não reconciliação: o casal Huillet/Straub, Pialat, Monteiro, Godard, Moretti, Cavalier, Kitano, e alguns outros. E é por isso que expressões como "verdadeiro cinema" surgem de vez em quando naquilo que escrevo; que me sejam relevadas em nome da importância que este cavalo de batalha assume para mim. No fundo, isto mais não é do que uma simples questão de vocabulário. Chamemos-lhe "cinematógrafo" (Bresson), "sétima arte" ou "xpto"; pouco importa, desde que lhe seja concedido o elementar direito de existir.

A respeito das cerimónias de entregas de prémios, mantenho que, dos Óscares aos BAFTA, passando por Césares e outros Goyas, mais não são do que campanhas de promoção e bem comportada auto-celebração das indústrias cinematográficas nacionais. Prémios atribuídos pela crítica dever-se-iam revestir de um outro interesse, mas, sintomaticamente, acabam na maior parte dos casos por respeitar as escolhas dos profissionais do cinema.

Para além disso, os vestidos e toilettes dos actores e actrizes que participam nessas cerimónias são, nove em cada dez vezes, simplesmente horrorosos, como se resultassem de uma campanha minuciosamente orquestrada para desfear aqueles que a natureza mais generosamente dotou.

Destaques da Cinemateca para este mês de Abril

(Publicado originalmente a 10/4/2003.)

"One From the Heart" (dia 12, 19h, dia 14, 22h); "Casanova" (dia 22, 19h); "Orfeo" (dia 22, 19h30); "The Baby of Mâcon" (dia 24, 19h); "Le Carrosse d'Or" (dia 24, 21h30); "A Countess from Hong Kong" (dia 26, 19h). Esta escolha é uma escolha pessoal, que não reflecte necessariamente as opiniões deste blog. Mais informações sobre a Cinemateca encontram-se aqui. Fim do post.

Popcorn Free Zone

(Publicado originalmente a 6/4/2003.)

Na sequência de um post de há alguns dias, e de uma troca de comentários com o Nuno Centeio do Espigas ao Vento, vou tentar esclarecer a minha posição a respeito do cinema de Hollywood e dos Óscares, sua reluzente ponta de lança.

O cinema americano pavoneia a sua hegemonia pelos ecrãs de todo o mundo, com excepções pontuais. Será isto inevitável? Sim e não. Sim, porque este é o resultado de um know-how, de maciços investimentos na indústria do entretenimento e de uma máquina de promoção e distribuição que levariam gerações a contrariar. Não, porque medidas de estímulo e protecção de indústrias de cinema local têm dado os seus frutos, um pouco por todo o mundo, revelando que é possível lutar contra a maré. O que é preciso compreender é que a preponderância do cinema Hollywoodita não é resultado de uma simples escolha do consumidor que, com a mesma naturalidade com que beberica uma Coca-Cola em vez de um Sumol de ananás, prefere o produto Made in Usa em lugar de uma qualquer alternativa ao seu dispor. O que se passa é que esta alternativa ou é escassa ou, na maior parte dos casos, nem sequer existe. Ninguém ignora que isto se deve essencialmente ao forte vínculo entre salas e grupos distribuidores apostados em escoar os seus produtos, o que leva a que apenas uma fatia diminuta (e de representatividade mais do que duvidosa) do cinema mundial seja acessível ao espectador médio. Quanto a liberdade de escolha, estamos conversados. Esta situação beneficia ainda da conivência activa de quase toda a comunicação social, que não só atribui infalível destaque às estreias de qualquer blockbuster vindo do outro lado do Atlântico, como veicula com regularidade novidades irrelevantes da vida privada das estrelas, o que funciona, com temível eficácia, como processo adicional de promoção de todo um sistema.

Nada disto constitui novidade, nada disto será excessivamente controverso. A pergunta fulcral que se coloca é: será que, independentemente da vertente comercial, o público fica bem servido do ponto de vista de qualidade e diversidade? A minha resposta é um categórico NÃO. Entendo que o cinema americano, independentemente das numerosíssimas obras-primas que produziu, tem sido de entre todos o mais poderoso agente de normalização estética de uma arte que ainda está tragicamente longe de realizar uma ínfima fracção do seu fabuloso potencial. Ao impor uma estreita latitude de matrizes narrativas, de códigos, de procedimentos, os estúdios americanos ditaram uma ideia de cinema que se globalizou a ponto de excluir filmes que àqueles fogem, de os remeter à condição de objectos não identificados, condenados à marginalização. Existirão muitas excepções, mas todas elas ou terão surgido num contexto muito específico, ou terão resultado de concessões aos cânones dominantes, mais ou menos evidentes. Peter Greenaway afirma para quem o quer ouvir que os mais celebrados realizadores americanos contemporâneos, por exemplo Scorsese, ainda estão a fazer aquilo que Griffith fazia. Concordo inteiramente. É por isso que não posso conter um sorriso quando se fala na "diversidade" do cinema americano. Diversidade, de acordo, mas sempre condicionada a credos e cadernos de encargos robustecidos à força de dólares; diversidade sob custódia, com trela e açaime, vigiada de perto, submetida à tradição, à etiqueta e aos ditames do custo-benefício. Assim como existe uma enorme variedade de gaivotas, mas também existem albatrozes, andorinhas, faisões, alces, escorpiões, varanos, ouriços, gorilas, mosquitos, pumas, protozoários...

Quanto aos Óscares (©, TM, e tudo o resto), mais não são do que a supremamente arrogante emanação de uma indústria auto-satisfeita, convencida de polarizar tudo aquilo que de bom e durável se faz em termos de cinema. A nomeação de "A Vida é Bela" para melhor filme surgiu, a este respeito, como um momento revelador para mim. Até aí, na minha inocência, eu acreditara que o Óscar para melhor filme premiava necessariamente uma obra em língua inglesa, e que o prémio para melhor filme estrangeiro seria algo como um condescendente "Best of the Rest". Afinal, comprovava-se que aquelas alminhas acreditam estar a distinguir anualmente o melhor de entre todos os filmes estreados na área de Los Angeles, independentemente da língua.

Outra ocasião epifânica aconteceu quando o grande vencedor da noite foi "American Beauty". De certa maneira, é mais penoso ver triunfar um filme com pretensões do que uma baboseira destinada a acompanhar a ingestão e digestão de pipocas, e a ser esquecida em menos tempo do que se leva a dizer "Gladiador"; sobretudo quando tal decisão é aclamada como uma vitória do cinema de autor... Pessoalmente, considero que "American Beauty" está para o verdadeiro cinema (chamemos-lhe ou não "de autor", isso seria outra discussão) como o Ricky Martin está para a world music. Trata-se de uma historieta com o mérito de pôr dedos nalgumas feridas, mas que revela incapacidade de ir além de um propósito caricatural inconsistente e irrelevante, condimentado por tiradas embaraçosas sobre a beleza de um saco de plástico ao vento.

Dizem-nos e repetem-nos (a começar por João Lopes, crítico que aliás eu deveras admiro) que há que evitar simplismos e maniqueísmos quando se discutem as problemáticas do cinema, nomeadamente o confronto EUA/Europa ou EUA/Resto do Mundo. Eu sou contra maniqueísmos de qualquer espécie; contudo, também sou contra a insistência em edulcorar e minimizar situações como a que descrevi, que põem em causa o cinema enquanto arte e espaço de criação, e que, levadas ao extremo, conduzem à invisibilidade (na melhor das hipóteses) ou à negação da credibilidade de filmes e cineastas que ousam a diferença, a não reconciliação. É por isso que sou contra os Óscares. É por isso que sustento que este problema envolve uma componente de luta e de resistência que não pode ser escamoteada.

Rainer Werner Fassbinder, "Cuidado Com Essa Puta Sagrada"

(Publicado originalmente a 6/4/2003.)

Uma equipa de filmagem espera por dinheiro e pelo realizador. O dinheiro não chega, o realizador sim, mas demonstra ser parte do problema em vez de parte da solução (para usar uma terminologia em voga). Vindo de quem vem, o contrário é que seria surpreendente: para Fassbinder, as relações humanas (mais do que qualquer abstracta noção de "natureza humana") são o problema, e a sociedade uma bojuda arca de Pandora tão grande quanto for necessário, e excessivamente rica em nichos e fundos falsos. A crónica dos conflitos e tensões entre homens e mulheres condicionados por um momento da história, por um microcosmos social ou pelo preconceito sempre foi o tema predominante da obra de Fassbinder. No caso presente, a harmonia parece irromper da sua própria impossibilidade: o filme sempre se faz, a cena do assassinato protagonizada por Eddie Constantine produzirá o efeito desejado. Desengane-se, porém, quem vê uma nota optimista, devidamente ataviada de "ordem arrancada ao caos", no desenlace que se segue a tudo o que de gratuitamente violento, vulgar e tumultuoso este filme contém. A sardónica autópsia do sucesso de um filme que tudo tinha para naufragar revela, com convicção e autoironia fundidas numa só arma de arremesso, o drama irresolúvel de Fassbinder, que era o de procurar um Absoluto tenso e velhaco, escondido entre a trama densa das interacções entre seres e temperamentos, de preferência muito fortes ou muito fracos, quando lhe faltava a fé e a paciência para os Absolutos solenes e bem soantes de que a época gosta.

Este é ainda um filme com o aliciante de contar no seu elenco com Margarethe von Trotta, Werner Schroeter (muito jovem, de chapéu negro) e Magdalena Montezuma. São consumidas mais cuba libres do que em qualquer outra longa-metragem da história. Os zooms selvagens e a toada de improvisação funcionam como apologia de um cinema cru, mas refinado na sua espontaneidade festiva. Fassbinder realizou 28 filmes em 13 anos. "Cuidado com essa Puta Sagrada" ajuda a compreender tanto a sua importância como o facto de da sua carreira não constarem obras-primas.

De Robert a Sandrine em 3 etapas (2/3)

(Publicado originalmente a 2/4/2003.)

Os actores principais do filme "Rien sur Robert" são o inefável Fabrice Luchini e Sandrine Kiberlain. Das actrizes do cinema francês contemporâneo, nenhuma reúne tanta inteligência, carisma e subtileza interpretativa como Sandrine Kiberlain. Cada desempenho seu é um desmentido louro e delgado da ideia de que a inteligência e perspicácia são inimigas do comediante. Hoje é dia de Sta. Sandrine, efeméride que junta ao agradável o útil, mão na mão.Mas nem sequer era necessário que fosse assim. Tratando-se de Sandrine, o mais tortuoso dos pretextos seria aceitável.