segunda-feira, dezembro 05, 2005

Por Um Punhado de Yens

(Publicado originalmente a 31/7/2003.)

No Japão, Takeshi Kitano é conhecido sobretudo como comediante e apresentador de concursos acéfalos. Mal acomparado, à escala portuguesa, seria um pouco como se o Carlos Ribeiro realizasse filmes e ganhasse o Leão de Ouro em Veneza. Dá arrepios, não dá?

"Beat" Takeshi é tão famoso na sua terra que faz publicidade aos mais variados produtos, e até aparece em cartões de telefone...

As Integrais do 1BSK

(Publicado originalmente a 31/7/2003.)

Takeshi Kitano (suite et fin).

"HANA-BI" (1997): Foi com este filme, consagrado no Festival de Veneza, e coberto de elogios entusiásticos, que Kitano se revelou em definitivo ao público ocidental. Compreende-se porquê. Sem ser um filme de abordagem fácil, "Hana-Bi" representa um expoente na arte, que Kitano cultiva, de combinar a representação da violência com uma poesia visual de assombrosa beleza, o que fornece ao filme o poder de apelar ao sentido estético e às emoções do espectador de maneira poderosa e isenta de mediação. Aparecendo pela primeira vez frente às câmaras depois do seu acidente (que deixou marcas evidentes no seu rosto, causando um défice de expressividade de que não deixa de se alimentar a composição da personagem), "Beat" Takeshi veste a pele de um polícia cuja atitude e trajectória destrutiva não são essencialmente diferentes das do protagonista de "Violent Cop", 8 anos antes, porém reinterpretadas à luz de um niilismo sereno, e da abundância de efeitos que a espartana economia de meios salva da auto-indulgência. Autêntica bíblia da contenção e da elipse, fértil em inesperadas invenções formais (em particular os notórios "raccords" com forte conteúdo significante, que se tornaram numa das imagens de marca do realizador), "Hana-Bi" representa o auge dessa obsessão kitaniana de se isolar do mundo dos homens, criando vazio à sua volta tanto do ponto de vista metafórico como literal, num movimento que, alheio ao mero solipsismo, se destaca com nitidez e tremenda intensidade, na sua evidência de reacção ao sofrimento e ao absurdo.

"O VERÃO DE KIKUJIRO" (1999): Como quem se diverte a defraudar as expectativas daqueles que esperavam, com mui cinéfila ansiedade, o novo filme do criador de "Hana-Bi", Kitano saiu-se com uma comédia ligeira, pacatamente on the road, que surpreendeu em especial todos aqueles que desconheciam a sua faceta extra-yakuza ("A Scene at the Sea", "Getting Any?"). Explorando o tema, tantas vezes glosado, do adulto que se vê obrigado a cuidar de uma criança que não esperava nem desejou, Kitano não deixa de dar largas a alguns dos tiques a que nos habituou anteriormente, como por exemplo a propensão para a elipse, para a redução de um evento ou episódio ao seu prólogo e às suas consequências, de tal forma que chega a maliciosamente pôr em causa a razão de ser e as virtudes da imagem-em-movimento. Pessoalmente, apesar de reconhecer que o burlesco agridoce de "O Verão de Kikujiro" chega a ser tocante, a espaços, e que resulta enquanto veículo para Kitano dar largas, de maneira benigna, à sua caudalosa veia cómica, considero que não faz parte das suas obras mais interessantes. Vejo este filme acima de tudo como uma pausa, que coincidiu com um momento delicado da carreira do realizador, atendendo ao muito que era esperado dele após a consagração. (O que não quer dizer, como é óbvio, que tenha sido um filme no qual ele se investiu menos do ponto de vista criativo.) É curioso notar que este foi o primeiro de uma série de quatro longas-metragens muito diferentes entre si do ponto de vista formal, o que parece denotar uma saudável tentativa de se desfazer da etiqueta de fazedor de filmes de gangsters.

"BROTHER" (2000): Primeiro filme de Kitano realizado na América, "Brother" parece claramente uma obra mal amada, por razões que me custam a entender. A alguma crítica especializada, com a impaciência que é seu apanágio, pareceu fazer espécie a insistência nalguns temas (violência, luta entre gangs, mudez sorumbática da personagem principal, pendor de auto-destruição); é bem sabido que não há maior pecado para um cineasta do que dar a impressão de fazer sempre o mesmo filme, mesmo que essa impressão se deva apenas a 2 ou 3 detalhes superficiais (se há coisa que nunca escape a uma certa crítica, são precisamente os detalhes superficiais...). Pelo que me toca, acho admirável a coerência de Kitano, e apreciei a maneira como, ao filmar pela primeira vez num ambiente estranho, se esforçou em reunir as condições para realizar o seu filme, em vez de procurar um pacífico e consensual meio termo entre duas culturas, motivado ou não pelas exigências de produtores, ou por requisitos de mercado. Como não ver, na contida e tranquila determinação de "Beat" Takeshi actor, a feroz obstinação de integridade de que todos os que seguem a sua carreira sabem Takeshi Kitano capaz? "Brother" é um filme negro, sujo, amargurado e desesperado, mas também indestrutivelmente honesto; desprovido do deslumbrante lirismo pictórico de "Hana-Bi", possui, contudo, algo que nem essa nem nenhuma das obras anteriores possuía: o sobressalto de esperança e calor humano, sob a forma da amizade que liga o protagonista ao seu brother in arms, e que se materializa, sob forma de penhor, para lá do último e fatal tiroteio.

"DOLLS" (2002): Sobre este filme escrevi já, com alguma demora, recentemente. Com vossa licença, para lá vos remeto.

"ZATOICHI" (2003): Este filme, já a entrar (se não erro) em fase de pós-produção, terá a curiosidade de ser a primeira reconstituição histórica de Kitano. O enredo gira em torno de um mestre de artes marciais. Para mais pormenores, sugiro a consulta deste site, que já aqui recomendei, e de onde, aliás retirei todas as imagens aqui apresentadas.

As Integrais do 1BSK

(Publicado originalmente a 29/7/2003.)

Considero Takeshi Kitano um dos poucos cineastas realmente significativos que se revelaram nos últimos 10 ou 15 anos. Por isso, e aproveitando também a estreia recente da sua última longa-metragem ("Dolls") entre nós, escolhi-o para iniciar esta nova rubrica, que se quer ao mesmo tempo homenagem, esboço de intervenção crítica e visita guiada pela filmografia do autor.

"VIOLENT COP" (1989): Inicialmente, Kitano deveria ser apenas actor neste filme. A indisponibilidade do realizador, contudo, acabaria por levá-lo a assumir as rédeas do filme, e a assinar aqui a primeira obra da sua filmografia. Para me servir de um termo de comparação retirado do imaginário ocidental, "Violent Cop" pode ser visto como um "Dirty Harry" nipónico, minimalista, directo nos meios e na brutalidade, mas ao mesmo tempo oblíquo na sua absoluta recusa de qualquer vestígio de estatuto de paladino do Bem para o seu anti-herói. A animosidade da personagem principal (um inspector da polícia) contra a criminalidade pequena e grande, contra a crueldade e a corrupção humana, é obstinada, monótona, intensa, desprovida de altos e baixos, e alheia a qualquer veleidade de melhorar o mundo. A este estado de espírito adequa-se a repetitiva estrutura do filme, marcada por longas sequências que mostram Kitano caminhando, simplesmente, na rua, como que isolado de qualquer destino e de qualquer propósito. "Violent Cop" é um filme que anuncia todos os outros, apresentando temas e obsessões que Kitano teria oportunidade de trabalhar mais tarde com outra liberdade criativa.


"JUGATSU/PONTO DE EBULIÇÃO" (1990): Primeiro filme 100% pessoal de Kitano, "Jugatsu" constitui uma excepção na sua obra na medida em que ele aparece como actor (usando o pseudónimo pelo qual é mais conhecido no Japão, "Beat" Takeshi) num papel secundário. Em todas as outras suas obras, Kitano ou não participa como actor ou é protagonista principal. "Jugatsu" impressiona pela maneira como, tão cedo na sua carreira, o cineasta manipula já com tanta segurança os meios ao seu dispor, a ponto de construir um espectáculo sumptuoso onde o argumento e o refinado tratamento das imagens se conjugam naquilo que apetece ver como uma reflexão sobre uma obra por vir. Explico-me: na sua lógica, algures entre sonho, visão e aspiração da personagem principal (um jovem apático, que penetra quase por acaso no universo dos gangsters), "Jugatsu" integra diversos elementos dos filmes subsequentes (os yakuza, o desporto, a praia, a violência gratuita) num todo que apenas o burlesco, o absurdo e o inverosímil sustentam, na maior das precariedades. E é precisamente esta gritante fragilidade do conjunto que salienta o papel e a função de cada um dos elementos, e a sua importância na duvidosa coesão do edifício. Como se Kitano precisasse de adquirir confiança a este respeito, projectando na ordem do hipotético aquilo que, em obras subsequentes, apareceria como realidade sólida, inescapável, sem fissuras.É também em "Jugatsu" que pela primeira vez se nota outra das imagens de marca de Kitano: a coexistência da beleza mais sublime com a mais crua violência (inesquecível, a sequência da arma escondida no meio do ramo de flores).

"A SCENE AT THE SEA" (1991): Um jovem surdo-mudo; a sua namorada, também surda-muda; ele trabalha na recolha do lixo; um belo dia, encontra uma prancha de surf no lixo; o seu sonho é tornar-se surfista e participar em competições; conseguirá? Os ingredientes parecem reunidos para uma pessegada sentimentalona. Mas com Kitano atrás da câmara, como é evidente, sentimentalismo é a última coisa que se poderia esperar. Com uma contenção absoluta, Kitano alcança a proeza de ao mesmo tempo contar uma história simples e poderosa de dignidade e proceder a uma profunda reflexão visual sobre a relevância ética de elementos fílmicos básicos, em particular o plano, que 99,9% dos filmes tomam como um banalíssimo dado adquirido, e que aqui percebemos ser o veículo que exprime e define a realidade das relações humanas nas suas vertentes mais simples: ausência, presença, distância.


"SONATINA" (1993): Na minha pessoalíssima opinião, o melhor e mais coerente filme de Kitano. Entre dois períodos onde predomina a violência, encontramos os yakuza do costume perdidos numa praia remota, sem nada para fazer. É o momento dos jogos, mais ou menos perigosos, numa terrível dilatação do tempo em que o lúdico e o comezinho ocupam a concavidade deixada pela súbita ausência de barbárie. Quanto mais se assemelha a um gentil período de recreio, mais a fatalidade parece obscena. Passa algum tempo até que nos apercebamos de que, nessa solarenga suspensão do enredo, aquilo que mais angustia é a naturalidade com que aceitamos a ausência de alternativas. Nada há a fazer a não ser aguardar a retoma da violência. Nada, a não ser, precisamente, ocupar o tempo, e isto é tão válido para aqueles dias de lazer roubados à fatalidade como para o próprio tempo do filme, imitando a vida na sua obsessiva necessidade de ser preenchida, seja com o que for. Para evitar o vazio, tudo é legítimo, até campeonatos de sumo na areia.

"GETTING ANY?" (1995): Nunca vi este. Relata quem viu que nesta comédia, deliberadamente alarve, "Beat" Takeshi dá largas à faceta de comediante que o popularizou no seu Japão natal. O mau gosto, a vulgaridade e o burlesco têm lugar de honra. Dificilmente exportável, presume-se. Não posso dizer que morra de desejo de o ver; porém, Kitano já nos deu múltiplas razões para merecer o benefício da dúvida.

"KIDS RETURN" (1996): Primeiro filme depois do grave acidente de motorizada que deixou Kitano com uma paralisia facial parcial. As recordações que guardo deste filme são muito vagas. Na maneira como aborda a vulnerabilidade e volubilidade da juventude, aparece como um gémeo de "Jugatsu", mais sombrio e realista.

CONTINUA AMANHÃ (OU PROXIMAMENTE, EM TODO O CASO). Faz-se tarde, e tenho ainda de transmitir um recado do colega Ponziani.

Epistolaria Monteirensis

(Publicado originalmente a 21/7/2003.)

Enquanto as condições logísticas, atmosféricas e temperamentais necessárias para escrever sobre "Vai-e-vem" teimam em não se reunir, decidi transcrever uma carta dirigida por J.C. Monteiro ao "Público", provavelmente em 1997 ou 1998 (por imperdoável lapso, esqueci-me de datar o recorte). Pessoalmente, acho-a deliciosa, sobretudo quando a imagino lida pela vozita e pela dicção inimitáveis do sr. João de Deus (cujos ensinamentos, a julgar pela maneira troglodita como são servidos os cones de gelado nos dias que correm, a poucos aproveitaram).Tratando-se de uma carta que foi publicada num diário de grande tiragem, julgo não estar a cometer nenhuma inconfidência.

«O jornal PÚBLICO insere na sua edição de 29 de Novembro uma notícia [com base em informação da agência Lusa] sobre alguns incidentes provocados pela minha pessoa, no âmbito de uma retrospectiva de alguns dos meus filmes, organizada pelo festival de cinema de Gijón.

Dado que a referida notícia não corresponde à inteira verdade dos factos, solicito a publicação das rectificações que se seguem.

Ao chegar a Gijón foi-me fornecido o catálogo do festival. Após leitura das sinopses, verifiquei que as mesmas não correspondiam aos filmes que havia feito. De aí, a pergunta: quem foi o imbecil que escreveu estes disparates?

Verifiquei que o filme "Le bassin de John Wayne" figurava no catálogo, apesar de eu não autorizar a sua passagem, pela razão simples de ainda não o ter visto.

Solicitei à direcção do festival que me fosse dada a possibilidade de proceder publicamente às rectificações julgadas necessárias para o que considero lesivo dos meus filmes. No dia seguinte, meia hora antes da projecção do filme intitulado "Recordações da Casa Amarela" (e não de "Le Bassin de John Wayne", conforme foi noticiado), dirigi-me para a cabine para acertar questões de projecção. Fui informado pelo projeccionista que alguns dos meus filmes haviam já passado num formato errado (1:1.66 em vez de 1:1.37). Foi possível proceder-se à correcção, pelo menos da imagem, dado que, no que diz respeito ao som, e atendendo a que a sala estava regulada para o sistema Dolby, não havia grande coisa a fazer. Já na sala, dirigi-me delicadamente aos espectadores, começando por lamentar não falar asturiano e prestando as minhas homenagens aos mineiros massacrados em 34 pelas tropas franquistas.

Afirmei, desdizendo o que vinha escrito numa das famigeradas sinopses, que nunca tinha tido conversas com Deus, que era um cineasta comunista "sui generis", etc. Admito que, a páginas tantas, a coisa azedou e que não terei dirigido palavras de grande afabilidade para o certame de Gijón e mesmo para o senhor primeiro-ministro da monarquia espanhola.

Nunca me dirigi em termos ofensivos a uma cidade que não conheço e na qual até descobri dois Rossini raríssimos.

Finalmente, não pedi desculpas a ninguém. Quem me conhece sabe-o perfeitamente.João César Monteiro - cineasta»

O 1BSK Recomenda

(Publicado originalmente a 20/7/2003.)

Numa pesquisa rápida que efectuei sobre Kitano, deparei com um excelente site (em francês) sobre este realizador e actor japonês, contendo centenas de magníficas imagens dos seus filmes, programas televisivos, aparições em festivais, "making of", etc. Altamente recomendável.

Cinema

(Publicado originalmente a 20/7/2003.)

"Dolls", de Takeshi Kitano. Como sucede com todos os autores realmente significantes, cada filme de Kitano representa um momento de uma perpétua interrogação sobre a natureza do cinema, e sobre aquilo que distingue um filme de uma (mais ou menos hábil) justaposição de cenas, ideias, nacos de diálogo, piruetas narrativas. Em "Dolls", assistimos a um fascinante esforço de resgate de elementos que a brutalidade de um destino, à maneira de enxurrada, tenderia a arrastar consigo, num movimento que se identificaria com a própria aniquilação da possibilidade de cinema. Ao procurar reparar o irreparável (a loucura da mulher que ele abandonou, ao aceitar um casamento de conveniência), a principal personagem masculina não visa outra coisa senão subtrair alguém ao império do Absoluto, do sofrimento e da dor sem limites, que nenhuma mediação poderá mitigar; e fá-lo da única maneira possível, ou seja, tentando reinstalar a sua amada nesse mundo do Relativo onde a felicidade é possível, ainda que duvidosa; onde as pessoas estabelecem laços no tempo e no espaço, que por vezes, mas apenas por vezes, se traduzem em peripécias e enredos. Se esse caminho de regresso fosse coroado de sucesso, o resultado poderia ou não ser um filme; do óbvio malogro, Kitano faz uma solene aproximação à irredutível omnipresença da dor. À falta de um vínculo, à falta do vínculo que a sua leviandade comprometeu para sempre, a corda de que o homem se serve para amarrar um ao outro os corpos de ambos é mais do que uma desesperada artimanha, ou um mero dispositivo de segurança: é a própria materialidade do filme, o penhor da sua existência, o patético mas necessário sucedâneo de uma relação que nunca o será, e que concentra, em negativo, a totalidade das narrativas possíveis, todas elas nado-mortas, cada uma delas uma pequena porta para um matiz diferente de felicidade, com o seu estado de coisas associado, assim como imagens e sons.

Parece-me ainda que, deste ponto de vista, os dois episódios anexos (o yakuza que reencontra a sua amada da juventude num banco de jardim, e a cantora que sofre um acidente) funcionam, mau grado os seus desfechos trágicos como uma discreta vingança contra a funesta esterilidade da não-história principal. Como se o seu poder fecundador, ainda que debilitado, fosse suficiente para engendrar (e ilustrar) situações de argumento independentes, graças unicamente à proximidade física.

Quanto à intensidade estética de algumas das cenas, que chega a roçar o dificilmente tolerável, a única coisa que se me ocorre dizer é que, para quem conhece "Hana-bi", tais extremos de beleza surgem como algo que se toma quase como garantido, vindo de quem vem. Mas sem que tal prejudique a fruição.

Nem uma palavra a respeito das marionetas. Mencioná-las, e à tradição japonesa do bunraku, obrigaria a uma laboriosa construção de pontes até à outra margem, que seria a de Kleist e a de um certo ensaio... A delicadeza da tarefa leva-me a desistir da tarefa. Fim do post.

Cinema

(Publicado originalmente a 9/7/2003.)

"Mischka", de Jean-François Stévenin. O aspecto mais fascinante deste filme é a maneira como o próprio tempo da acção, idas e vindas, desencontros e vicissitudes servem de matéria prima para a consolidação de laços, num processo brusco e atabalhoado que coloca ao mesmo nível o parentesco, o acaso puro e simples, e uma espécie de fatalismo difuso e benigno, ligeiro como a França estival, entregue aos turistas, ao calor e ao "chassé-croisé" nas autoestradas. A demanda parece ser a razão de ser dos itinerários das personagens, mas o reencontro tão esperado aparece como um momento deliberadamente demasiado frouxo para servir de ponto de inflexão ou desenlace de um fluxo de peripécias que adquiriu solta e humaníssima autonomia, e que tanto poderia cessar ali mesmo, quando a película acaba, como durar mais um par de horas, ou confundir-se com a vida. Tudo isto num ambiente tão copiosamente franco-francês, libertário e "Copains d'abord" que quase se consegue sentir o aroma a Camembert, cidre doux e rillettes.

À sua maneira, e mau grado o meu cepticismo relativamente à expressão, "Mischka" é mesmo um "hino à vida". Tinhas razão, Nuno!

É importante assinalar que Jean-François Stévenin tem feito carreira essencialmente como actor, tendo participado em nada menos de três filmes de Rivette: "Out 1", "Merry-Go-Round" e "Le Pont du Nord".

A Não Perder Amanhã na RTP2

(Publicado originalmente a 7/7/2003.)

"Jugatsu/Ponto de Ebulição", um dos mais brilhantes filmes de Takeshi Kitano. Para variar, "Beat" Takeshi faz de gangster, mas desta vez com enfeites na cabeça.

Bis Repetita Placent

(Publicado originalmente a 3/7/2003.)

Pela segunda vez em 43 anos, depois de Gillo Pontecorvo, um italiano causa indignação por causa de um "Kapo". Hoje, como então, impõe-se uma rivetteana vontade de apontar o dedo a abjecções e indignidades.

Os Meus 5 Filmes Preferidos de Wim Wenders

(Publicado originalmente a 1/7/2003.)

A propósito do que aqui foi escrito há dias sobre "O Estado das Coisas", aqui segue, para vosso gáudio e recreação, a lista dos meus 5 filmes preferidos de Wim Wenders.

"Movimento em Falso"(1974): Espécie de "Gata Borralheira" dos seus filmes do "período da errância", esta é uma obra que parece comprazer-se em acumular as fragilidades, as vulnerabilidades desfraldadas como bandeiras de papel a meia haste. Não só não existe "história", como a possibilidade de uma qualquer narrativa capaz de concentrar elementos díspares num todo com sentido se esgota ao ritmo de cada respiração e passo em frente. E porém, o final sugere (com a devida contenção elíptica) a inevitabilidade de uma situação em que o gesto possui significado, e que do seu malogro ou do seu sucesso dependem a realização do ser e do grupo (a palavra "felicidade" exigiria uma atmosfera menos rarefeita para ser pronunciada). As recordações que guardo deste filme são, apropriadamente, ténues e escassas. Este foi o primeiro filme de Nastassja Kinski.

"Ao Correr do Tempo"(1975): A força desta obra resulta da maneira como combina o seu estatuto de súmula das ideias cinematográficas de Wenders com um despojamento e liberdade que diluem a gravidade dos filmes anteriores e que, conjugados com a invulgarmente longa duração e com alguns detalhes engenhosos (a começar pelo genérico), fazem deste um trabalho de uma ousadia formal empolgante. Rüdiger Vogler (um dos mais subvalorizados actores do cinema europeu) e Hanns Zischler são notáveis. Um capítulo fecha-se com abundância melancólica de imagens e de diacronia, sem que inesperados momentos de euforia deixem de ocorrer. O filme seguinte seria "O Amigo Americano". Go west, my friend...

"O Estado das coisas"(1982): Sobre este já disse que chegue. Insisto apenas no seu papel charneira, baliza de um período em que, após as homenagens explícitas ("Lightning Over Water", "Hammett"), Wenders integra numa ficção a reflexão sobre as imagens, os seus meios de produção, emprego e fruição e a sua relação com a evolução das sociedades.
"As Asas do Desejo"(1987): Verboso, impossivelmente belo, este filme consagra as núpcias da palavra, da imagem, da história e do sonho num todo que se quer encruzilhada e ponte entre o passado e algo que Wenders pareceu querer perseguir a partir de então, mas sem que os seus contornos e matizes alguma vez se tenham tornado definidos. O problema de como filmar o inefável num contexto eminentemente terreno (Berlim na sua evidência material, deselegante, cindida, suja) é resolvido com uma melancolia barroca absolutamente nova na filmografia deste realizador, vagamente mórbida na maneira como explora, ao mesmo tempo que a edifica, uma fronteira entre história e irrealidade. A colaboração com Peter Handke é um sucesso comparável em importância às duplas Resnais/Robbe-Grillet, Resnais/Duras e Oliveira/Agustina.

"The End of Violence"(1997): Na minha opinião pessoal, a única ocasião pós-"Asas do Desejo" em que Wenders soube dar corpo a um objecto cinematográfico consistente e digno do seu talento. Sem ser um filme de tese, todo ele se articula em torno da resposta a uma questão («O que é a violência?»), e a esse ímpeto de abstracção corresponde uma obra admiravelmente coerente em termos de ideias e soluções narrativas. Um comentário aos tempos e costumes que não esconde (e é isso que faz a sua força) essa sede de imagens e situações, e essa proximidade relativamente às pessoas que desde cedo sustentaram a vontade de fazer cinema deste realizador.

Dois Falecimentos no Cinema

(Publicado originalmente a 1/7/2003.)

Mais pelo acaso das frequências cinéfilas do que por qualquer predisposição negativa, conheci pouquíssimos filmes onde tenha entrado Katharine Hepburn. Não tendo, para além disso, nenhuma opinião sobre aquilo que ela simbolizou ou não na sua longa carreira, limito-me a assinalar o seu desaparecimento com tristeza. Não posso deixar de notar a inevitável abundância de referências, nos obituários e referências da comunicação social, a essa suposta "idade de ouro" Hollywoodiana em relação à qual sou mais que céptico. Mas deixemos estas farpas para outras ocasiões mais apropriadas.Muito mais despercebida passou a notícia do falecimento de Jean-Claude Biette. (Aliás, dela só tive conhecimento graças ao programa de Julho da Cinemateca.) Notável crítico nos "Cahiers du Cinéma" e na "Trafic", Biette realizou também meia-dúzia de longas metragens. Aquela que, tanto quanto sei, foi a derradeira ("Trois Ponts sur la Rivière", parcialmente passada em Portugal) foi trazida às nossas salas por Paulo Branco. Recordá-lo-ei sobretudo por um outro dos seus filmes, o tocante e original "Le Champignon des Carpathes", feliz memória cinéfila da Cinémathèque dos Grands Boulevards, Paris.aa 22:38

quarta-feira, novembro 02, 2005

Cinema

(Publicado originalmente a 16/6/2003.)

"O Estado das Coisas", de Wim Wenders. Ao ver este filme, compreende-se tudo. Compreende-se a importância de Wenders como personalidade que funcionou como caixa de ressonância de tendências, frustrações e melancolias de uma época do cinema (mais do que de uma "geração"); compreende-se a sua identificação estreita com o paradigma da errância (o fascínio passivo pelo movimento, sempre "em falso", como sucedâneo, ao mesmo tempo hipnótico e terra a terra, das grandes narrativas de que o cinema do passado, em especial o americano, se apropriou); compreende-se, enfim, a inevitabilidade da evolução da sua carreira, rumo a um estatuto de "referência moral" do cinema europeu, paciente divulgador de desencantos, raro híbrido de diletante e estóico. A abdicação de uma qualquer veleidade de se tornar um Grande Realizador conhece aqui mais um dos seus intermináveis actos, nas dunas de uma praia portuguesa. A singularidade deste belo e subtil filme será talvez a maneira como alberga um esboço de "ars poetica" que aparece como contrapartida, longínqua e desiludida, do projecto que Godard enuncia em "Pierrot le Fou": filmar, não as pessoas, não as histórias, mas aquilo que existe entre elas, as relações, os predicados, essa espessura traduzível em claro-escuro e, bem entendido, na dolorosa passagem do tempo. Que resta deste filme, que dura o quanto baste para que se escoe qualquer vestígio de elemento redentor? Trocas de afectos. Sons e suspiros. Farrapos de futuro. E também, claro, o olhar da câmara.

O 1BSK errou

(Publicado originalmente a 11/6/2003.)

O nosso leitor Francisco Frazão assinalou um erro num post de ontem. Mencionámos um certo "Charles Daney", quando, como é óbvio, o verdadeiro nome do malogrado crítico e ensaísta é Serge Daney. Pelo lapso, imputável à senilidade que progride a largas passadas, as nossas desculpas. Com leitores tão atentos, dá gosto fazer umblog.

Primeiro, a biografia

(Publicado originalmente a 10/6/2003.)

Jacques Rivette nasceu a 1 de Março de 1928, em Rouen, cidade que abandonará em 1949. Em Paris, Rivette envolveu-se com o grupo que viria a fundar a mítica revista "Cahiers du Cinéma": Truffaut, Godard, Rohmer, Jacques Doniol-Valcroze, Charles Bitsch... Leitor e cinéfilo voraz, Rivette viria a distinguir-se pela firmeza e profundidade das suas críticas cinematográficas, ao ponto de adquirir a reputação de intelectual entre os seus pares da "Nouvelle Vague", o que, convenha-se, tem o seu quê de notável.

Tal como os seus cúmplices, Rivette passou à realização durante a década de 50; ao contrário daqueles, não beneficiou de nenhum estado de graça por parte do público, e a sua primeira longa-metragem, "Paris Nous Appartient", foi um fracasso estrondoso. Ao longo dos anos que se seguiram, Rivette prosseguiu uma carreira de realizador em que o sucesso de audiências raramente acompanhou o reconhecimento crítico. A sua aura de personalidade enigmática, pouco dada à exposição mediática, justificada ou não, foi-se consolidando. Depois de uma década de 70 complicada, em termos quer artísticos quer pessoais, Rivette participou do segundo fôlego da "Nouvelle Vague" nos anos 80 e 90, com obras-primas como "L'Amour par terre", "La bande des quatre", "La belle noiseuse" e "Haut bas fragile", ou o mais recente "Va savoir". Paralelamente, a sua faceta de prolífico e penetrante pensador sobre a natureza do cinema foi encontrando ocasiões para se manifestar, nomeadamente através de entrevistas e de um excelente documentário-conversação com Charles Daney, filmado por Claire Denis.

E agora, cinema!

(Publicado originalmente a 10/6/2003.)

O nosso leitor Francisco Frazão teve a amabilidade de nos escrever, com palavras simpáticas sobre o blog, e sobre as (muito esporádicas) referências que temos feito ao realizador Jacques Rivette.

Agradecemos o comentário e a atenção, e também o excelente pretexto para passarmos a discorrer de maneira mais abundante sobre alguém que tem ocupado um lugar singularíssimo no panorama do cinema das últimas décadas, e que admiramos até à mais absurda desmesura.

(Publicado originalmente a 5/6/2003.)

«Creation, to me, is to try to orchestrate the universe to understand what surrounds us. Even if, to accomplish that, we use all sorts of stratagems which in the end prove completely incapable of staving off chaos.» (Peter Greenaway)

(Publicado originalmente a 2/6/2003.)

«...The note had been struck, she had responded to it, as she responded to every suggestion, faultlessly; she knew that she could repeat the note, whenever she wished, now that she had once found it. There would be no variation to allow for, the actress was made at last. She might take back her lover, or never see him again, it would make no difference. It would make no difference, she repeated, over and over again, weeping uncontrollable tears.»(Do filme "Esther Kahn", realizado por Arnaud Desplechin, argumento de Arnaud Desplechin e Emmanuel Bourdieu, adaptado de uma obra de Arthur Symons.)

Cinema (3)

(Publicado originalmente a 2/6/2003.)

"Los Lunes al Sol", de Fernando León de Aranoa. A estrutura deste muito conseguido filme espanhol imita a própria situação em que se encontram as personagens, desempregados de longa duração, cujo próprio estatuto de pessoa ameaça sofrer a erosão de um quotidiano onde nada acontece. O evento, a heterogeneidade na passagem do tempo, surge como iguaria rara, e, a esse respeito, é exemplar o estatuto da personagem principal (Javier Bardem, imenso na sua casmurra dignidade): apesar de, graças à sua personalidade, polarizar as existências dos seus colegas de infortúnio, é aos outros que acontecem as coisas (agradáveis ou funestas), exercendo ele o papel de observador, acólito carrancudo, ajudante ineficaz. A urgência da vida, os seus acasos felizes ou não, surgem como espasmos, tímidos e estranhos no seu isolamento; cabe ao cinema enquadrá-los numa dimensão temporal de amarga banalidade. Se a passagem do tempo é um processo áspero, a contemplação, as fantasias sobre a Austrália, as trocas de recriminações acerca de uma multa de 8 mil pesetas, tudo é lícito para diluir a melancolia. Mais precioso do que tudo isto, porém, é o simplicíssimo dom de estar lá. E é essa permanência, na sua vertente física e afectiva, que o cinema nos oferece com uma intensidade que nenhuma outra arte pode igualar.

Cinema (2)

(Publicado originalmente a 1/6/2003.)

"Peau d'Ange", de Vincent Pérez. Este é um filme descarada e retintamente francês, no fascínio evidenciado face à fragilidade dos seres, e na maneira como essa fragilidade é erigida em sujeito ficcional primeiro, com prioridade absoluta sobre trama, motivação, iniciação, zeitgeist, sociedade, futuro. Neste filme, que passou relativamente despercebido nas salas portuguesas, a fragilidade é repartida por duas personagens: a da jovem Morgane Moré, fatalmente vulnerável, na biografia como no semblante, e a de um Guillaume Depardieu que abandonou o romantismo malsão de "Pola X" como uma pele de cobra, instalando-se agora num registo de criatura marcada pela vida, que exacerba o seu cinismo para combater uma memória demasiado viva. A colisão efémera destes dois não-destinos exclui desde o início, de modo peremptório, qualquer perspectiva de um final que não seja trágico e doloroso. O percurso de ambos, ao sabor de acasos e bruscos assomos de motivação, desenrola-se em toada de cantata, à falta de gabarito digno de um hino.

Queria deixar uma nota final a respeito de uma sequência do filme, aparentemente tudo o que há de mais anódino. A jovem Angèle pergunta a uma religiosa se pode tomar conta do pequeno jardim (junto à prisão onde se encontra detida, suspeita de um crime que não cometeu). Em vez de resposta, surge o raccord para a cena seguinte, em que Angèle esgravata a terra do jardim. Esta sólida confiança no poder auto-explicativo da figura cinematográfica que substitui o elemento narrativo omitido (a resposta afirmativa da religiosa) é estarrecedora. A convicção de que o cinema pouco mais é do que uma tradução audiovisual de elementos narrativos convencionais predomina, nos dias de hoje, já se sabe; mas nem sempre a homenagem a tão redutor credo se materializa de modo tão explícito.

Cinema (1)

(Publicado originalmente a 1/6/2003.)

"Bowling for Columbine", de Michael Moore. Raras vezes terá sucedido que a discussão relativa aos méritos, atributos e pertinência de um filme tenha sido a tal ponto subalternizada em favor de picardias e trocas de galhardetes ideológicas, conjunturais, e também, valha a verdade, francamente nulas. Mesmo a discussão relativa ao real estatuto do filme (documentário ou ficção?) acabou por se esgotar em aspectos superficiais, inevitavelmente associados ao maior ou menor grau de manipulação dos factos e das situações, por parte de Moore. E o cinema no meio disto?Pessoalmente, não tenho dúvidas em qualificar "Bowling for Columbine" como uma ficção. Quando Moore entrevista o irmão do cúmplice do atentado de Oklahoma, a sua atitude perante os risíveis (mas inquietantes) desvarios do seu interlocutor é, a este respeito exemplar. Moore entrega-se (com evidente prazer) ao papel de entrevistador disposto a ser convencido, bonacheirão q.b.; os silêncios são cirurgicamente pesados para isolar, na sua atroz imbecilidade, a torrente de dislates que vão sendo ditos. Moore passeia, ao longo do filme, esta sua figura de "americano médio", e tira partido disso mesmo para inserir numerosas pepitas ficcionais, dotadas de unidade temporal, crescendo e desenlace, e que contribuem para a eficácia persuasiva do filme. Teria sido soberbo que esta interacção (mais subtil do que parece) entre postura documental e prática narrativa tivesse dado azo a debate menos viciado por querelas antigas ou modernas.

Quanto ao César de melhor filme estrangeiro, este foi, no mínimo, despropositado. Uma coisa é concordar com as ideias expressas (consistentes e bem defendidas, mau grado ocasionais laivos de simplismo e demagogia); outra, bem diferente, é transformar essa adesão num plebiscito que se desejaria estritamente baseado em critérios de excelência artística.

terça-feira, setembro 20, 2005

Comentários ao Palmarés de Cannes

(Publicado originalmente a 26/5/2003.)

Sem ter visto nenhum dos filmes, limitamo-nos a comentar tendências. Independentemente dos filmes propriamente ditos, satisfaz-nos que o palmarés tenha sido ousado, avesso a conformismos, idiossincrásico. Não foram defraudadas as esperanças que depositávamos em Patrice Chéreau: sob a sua batuta, o júri deu à luz um quadro de premiados que foge à morna previsibilidade que tinha vindo a prevalecer, nos últimos anos. Não podemos deixar de evocar a entrega dos prémios do Festival de 1999, em que, sob a presidência de um David Cronenberg cujo sorriso malicioso nunca o abandonou, dois filmes resolutamente contra a corrente ("Rosetta" e "L'Humanité") açambarcaram as principais distinções, para escândalo dos profissionais do cinema, cuja indignação corporativista chegou a raiar o ridículo. Quanto a Greenaway, saiu com as mãos vazias. Outra coisa não seria de esperar. Seria necessária uma qualquer conjunção astral inverosímil (ou então, que o júri fosse composto por clones do João Lopes) para que se decidissem a prestar alguma atenção àquilo que diz e filma o autor the "The Tulse Luper Suitcases". Aquilo que posso garantir é que um tal esquecimento não o fará perder nem sono, nem quilogramas, nem seguidores.

24 Vezes Por Segundo

(Publicado originalmente a 26/5/2003.)

Os comentários recentes do "Abrupto" sobre cinema francês geraram um mini-debate blogosférico (onde tomaram parte ainda o "De Esquerda" e o "Espada Relativa"). Dizem que se deve malhar no ferro enquanto este está quente; porém, infelizmente, o volume de trabalho tem sido incompatível com a taxa de libertação de calor do ferro, por isso é com algum atraso que volto a abordar este tema que tanto me diz. Algumas notas soltas, tão somente.

1) A origem da reputação de profundidade (com ou sem aspas, para o caso tanto dá) filosófica do cinema francês não é clara, mas tudo indica que emana da geração dos "Cahiers du Cinéma" e da Nouvelle Vague, cujas principais figuras (Truffaut, Rohmer, Godard, Rivette, Doniol-Valcroze, Douchet) possuíam uma apetência muito forte para a teorização da coisa cinematográfica, na esteira da influente personalidade de André Bazin. Esse esforço de teorização, não sendo "filosófico" no sentido estrito do termo, entrava em forte ressonância com a paisagem das ciências humanas francesas da época, e possuía uma profundidade e pujança intelectual absolutamente notáveis. No entanto, não é nada límpido estabelecer um elo entre esta fase da história da crítica cinematográfica e a praxis do cinema nas décadas subsequentes. Pessoalmente, defendo que a influência da Nouvelle Vague no cinema contemporâneo é bem menos importante do que alguns apregoam (quase sempre num propósito depreciativo), e que a propensão filosófica da geração actual de cineastas franceses não é mais nem menos forte do que noutros países. O que existe é a gravidade e a consciência de um cinema que se assume como um fenómeno artístico maior, que encontram eco numa crítica que não perdeu o hábito salutar de pensar o cinema, em lugar de se limitar a opinar sobre as virtudes e defeitos de um filme. É esta sinergia que, possivelmente, continua a alimentar, como uma chama sagrada, a ideia de um cinema francês pesadão, dado à reflexão, melancólico, umbilical, pretensioso.

2) Esses mesmos papas da Nouvelle Vague, envoltos na sua reputação de monges estilitas do cinema, de áridos e savonarolescos inimigos do cinema lúdico e divertido, foram responsáveis por obras plenas de ligeireza e de graça vaporosa: "Tirez sur le Pianiste", "Une Femme Est Une Femme", "Le Rayon Vert", "Va Savoir", "Adieu Philippine" (de Jacques Rozier, uma autêntica pérola), etc... etc...

3) A quase totalidade do cinema artisticamente relevante que se faz fora dos EUA faz-se, nos dias de hoje, com dinheiro francês. Isto não é apenas uma questão meramente comercial; é também uma ideia do cinema em acção.

Ainda Greenaway

(Publicado originalmente a 25/5/2003.)

Vasco Câmara, crítico do "Público" que merece respeito e crédito, escreve hoje acerca de "The MOAB Story": «(...) a primeira amostra do projecto é enciclopédica, voraz na acumulação de informação, citações (cita tudo, até Greenaway) e números, no estilhaçar do plano como unidade cinematográfica e na ausência de modéstia». Falta de modéstia? Seja. Se a profusão de ideias sobre o cinema e a Arte em geral, a vontade de as explorar de maneira coerente, criativa e ousada, a erudição, a articulação dos pontos de vista num discurso claro, incisivo e cáustico, a hiperactividade e a desmultiplicação em inúmeras actividades e projectos equivalem a presunção, então Greenaway é o mais imodesto dos cineastas, a anos-luz do medalha de prata.

Ecos da Croisette

(Publicado originalmente a 24/5/2003.)

Eurico de Barros comenta o filme de Peter Greenaway, "The Tulse Luper Suitcases - The MOAB Story", apresentado na Selecção Oficial do festival de Cannes: «(...)não passa de poeira para os olhos de "vanguardismo" laboratorial, repetitivo e estéril». Faltou falar do misantropismo terminal e da sobranceria, outras das críticas recorrentes que costumam ser dirigidas a Greenaway. Quanto a este vosso criado, e já que nenhum órgão da imprensa escrita me paga alojamento, viagem e ajudas de custo para ir à Côte d'Azur debitar inanidades, resta-me desejar que o vanguardismo laboratorial, com ou sem aspas, estreie rapidamente num cinema perto de mim. Estarei na quinta fila a contar do ecrã, sexta cadeira a contar da coxia do lado esquerdo, com um ou dois livritos de Kleist gentilmente tombados no regaço.

Cinema (2)

(Publicado originalmente a 19/5/2003.)

Escreve Pacheco Pereira no seu "Abrupto": «Uma das coisas que me faz ainda gostar mais do cinema americano e abominar a "excepção cultural" dos franceses é a capacidade que tem de manter o cinema como espectáculo e de tratar histórias complexas sem perder a complexidade. Porque imaginem o que a basófia filosófica dos franceses faria a histórias, como a do Blade Runner , do Matrix , ou do Minority Report , ou do Crash , ou as dos filmes de David Lynch transformando-as em filmes de tese , impossíveis de ver com prazer e perplexidade.». Claramente, não temos estado a ver os mesmos filmes franceses. A tendência predominante no cinema francês, pelo menos desde os anos 70, tem sido um naturalismo voltado para o quotidiano e para a exploração das relações pessoais (alcunhado depreciativamente de "cinema deux pièces cuisine"), cujos expoentes máximos são Maurice Pialat e Jacques Doillon, e cuja componente "filosófica" (mesmo entendida na sua acepção simplificada de "dada à reflexão sobre o mundo") é francamente ténue. Invertendo o sentido da especulação, não resisto a imaginar aquilo que faria o rolo compressor hollywoodesco de filmes como "Les Roseaux Sauvages", "La Reine Margot", "Conte d'Automne" ou "Ressources Humaines", para citar apenas alguns exemplos de obras relativamente recentes que obtiveram uma apreciável projecção no nosso país. Quanto à incompatibilidade entre filme "de tese" e "prazer", quem tem seguido este blog com um mínimo de regularidade sabe que ela não tem aqui direito de cidade.

Cinema (1)

(Publicado originalmente a 19/5/2003.)

Escreve Eurico de Barros sobre o filme "Les Égarés", de André Téchiné, apresentado recentemente em Cannes, que «...passa hora e meia a perseguir a própria cauda, enquanto Emmanuelle Béart faz cara de neura.». Palpita-me que vou gostar. Uma apreciação negativa de Eurico de Barros, sobretudo se lacónica e categórica, é das melhores recomendações que conheço.

Contagem Decrescente

(Publicado originalmente a 18/5/2003.)

Já só faltam 6-dias-6 para que o novo filme de Peter Greenaway seja exibido em Cannes!!!!!!

Rectificação

(Publicado originalmente a 9/5/2003.)

Mesmo com uma fractura exposta, irei ver o Garrel em Junho.

Cinemateca em Maio

(Publicado originalmente a 9/5/2003.)

Os destaques não são muitos. Diria mesmo que Maio será um mês algo morno. "I Confess" no dia 16. "The Hustler" já no dia 12. "East of Eden" no dia 19. E um Godard, mas não certamente um dos melhores ("Une Femme Est Une Femme"), no dia 30. Quanto ao ciclo Jacques Tourneur, o que me dissuade é a sensação de que, para ver só 2 ou 3, mais vale não ver nenhum. Para Junho, no entanto, o caso muda de figura, pois anunciam-nos um ciclo Philippe Garrel. Salvo em caso de afazeres inadiáveis, ou de uma fractura exposta, estarei plantado na Barata Salgueiro. Mais informações aqui.

O Que Há Num Rosto?

(Publicado originalmente a 3/5/2003.)

O rosto habita o plano, e algo de perverso se insinua nessa sua promessa de terceira dimensão. A boca culpa-se por existir, mas ao tempo pavoneia-se nos Grandes Boulevards, e é com um suspiro que evoca penhores de admiração e reflexões no espelho sujeitas à corrupção. Não falarei dos olhos. Sobretudo, esconderei as palavras sobre os olhos num fundo falso sem forro de veludo nem verosimilhança. O rosto lembra-se do corpo, e enrubesce. O inevitável pincel do inevitável artista abdica. O que é mostrado enterra o punhal na ferida aberta tantas vezes por segundo. A afinidade com o olhar é também uma história de ruptura, dos atentados do tempo que a pele absorve na sua matriz e exibe com um pudor agreste, trocista.Emmanuelle Devos nasceu em 1964. Seria manifesto abuso, desde logo, inseri-la numa qualquer vaga categoria de "novas actrizes" do cinema francês. Revelada essencialmente graças aos filmes de Arnaud Desplechin (em especial "Comment Je Me Suis Disputé... (Ma Vie Sexuelle)"), Devos tem passeado a sua figura singular, intensa e relutante, os seus olhos, cintilantes de risonha insolência, o seu radioso talento e a sua desconcertante versatilidade (de "vamp" a eterna adolescente fragilizada) por um cinema francês abundante em presenças femininas carismáticas. Em Portugal, vimo-la recentemente em "Esther Kahn" (a bailarina exótica que rivalizava com a protagonista no plano amoroso) e em "L'Adversaire" (a amante de Daniel Auteuil).A notícia da estreia do filme "Sur Mes Lèvres" em Lisboa é uma boa notícia. O filme em si (um "thriller" envolvendo uma deficiente auditiva, engenhoso a espaços, quase sempre eficaz) será tudo menos um festim cinéfilo, e o embaraçoso desempenho de Vincent Cassel num papel de ex-presidiário seria, em princípio, um poderoso argumento dissuasor. Mas a presença da grande EMMANUELLE pesa mais na balança. Melhor ainda: é ela própria a balança, e a espada, e o gabinete de Pesos e Medidas que tem por missão calibrar a balança, e também a respiração e o movimento que tudo isto sublimam.

domingo, setembro 04, 2005

Faz sentido!

(Publicado originalmente a 27/4/2003.)

Num inquérito realizado há vários anos pela revista "Time Out", Peter Greenaway incluiu "Casanova" na lista dos seus 10 filmes preferidos.

Federico Fellini, "Fellini's Casanova"

(Publicado originalmente a 27/4/2003.)

Federico Fellini era um dos pouquíssimos realizadores (fraca colheita em mais de 100 anos de história) cujo impulso criativo assumia a componente pictórica muito para além da sua mera vertente ilustrativa: não apenas como uma mais-valia a explorar, de maneira mais ou menos engenhosa, mais ou menos eficaz, mas como a própria essência do cinema, manancial de possibilidades, veículo de imaginários e celebrações. Pelo menos desde "La Dolce Vita" (mas de forma mais convicta a partir de "Giulietta degli Spiriti"), os filmes de Fellini passaram a consistir essencialmente em colecções de imagens que, autonomizando-se relativamente ao elemento diegético, sublimam-no numa realidade que, à falta de melhor termo, poderíamos designar por "supra-história". Vinhetas, episódios, farrapos de enredo, desfilam como números de circo, ao sabor da digressão, da memória, da procura do efeito cómico, do supérfluo. O seu "Casanova" é disto tudo um dos exemplos mais belos e eloquentes, e ao mesmo tempo um dos seus filmes onde a solidez do fio condutor mais palpável se torna, por entre o bricabraque acrónico e difuso de imagens e situações excessivas, inverosímeis, saturadas de burlesco acanalhado. Para além das fabulosas aventuras de Giacomo Casanova, é o clamoroso malogro de uma mundividência que tentava conciliar as proezas de amante magnífico com a erudição humanista que Fellini conta em imagens. Nenhuma ideia, descendência ou transcendência sobrevive à carreira de Casanova: somente a tristíssima realidade do ciclo único de pujança e decadência; somente a banalmente inevitável condição humana, que acrescenta a sua duradoura e muda tensão aos cumes e vales narrativos transpostos ao longo das décadas e da Europa. A derradeira cena (a dança com a boneca mecânica) pode ser vista como um sonho ou como um episódio autêntico, milimetricamente alheado da catadupa de memória, facto e bravata que o antecedeu. Não consigo, em todo o caso, deixar de pensar nela como uma última homenagem e vingança, um instante singular de consonância que é também a coisa mais sublime que nos oferece este filme sublime.

Croisette Blues

(Publicado originalmente a 26/4/2003.)

A divulgação da selecção oficial do Festival de Cannes deste ano trouxe uma desilusão e uma excitante confirmação. A desilusão foi a ausência de "Marie et Julien", um dos filmes perdidos de Jacques Rivette, cuja rodagem tinha sido interrompida nos anos 70, e que o realizador decidiu retomar mais de um quarto de século depois. A boa notícia foi a presença do primeiro filme do novo projecto de Peter Greenaway, "The Tulse Luper Suitcases" (que incluirá ainda duas outras longas metragens, para além de um CD Rom e de um prolongamento na Internet). O que mais me entusiasma neste novo trabalho de um criador que muito admiro é a nova aposta numa faceta documentarista e enciclopédica que nos deu obras primas como "The Falls", "A Walk Through H" ou "Vertical Features Remake", e que era dominante na obra de Greenaway antes de atingir a notoriedade internacional de que desfruta.

Resta desejar que o palmarés deste ano seja menos previsível do que nos dois anos passados: "Dancer in the Dark" e "La Stanza del Figlio" foram ambos favoritos do princípio ao fim do certame, e o galardão máximo parecia estar-lhes prometido desde muito cedo. A composição do júri de 2003 augura coisas boas: Patrice Chéreau não será por certo o homem menos indicado para fugir ao conformismo e protagonizar escolhas ousadas. Mas também é certo que, depois de Luc Besson, qualquer individualidade que fosse escolhida para presidente faria figura de génio.Mais informações sobre os filmes seleccionados aqui.

Paul Thomas Anderson, "Punch-Drunk Love"

(Publicado originalmente a 25/4/2003.)

O problema deste filme deixa-se descrever com mais facilidade do que as suas virtudes. E o problema deste filme é um esvaziamento do conflito que chega a parecer constituir a sua razão de ser. A não ser que o seu propósito seja muito específico (fazer rir, dar a conhecer uma situação), um filme implica um, ou mais, conflitos, e o relato ou ilustração das maneiras de o resolver. "Punch-Drunk Love" anuncia-se como um suculento naco de imaginário americano, ao qual não falta o underdog nem essa alienação redimível que tantos enredos tem propulsionado. Precisamente no momento em que os ingredientes parecem reunidos, e ainda por cima em doses não excessivamente canónicas, eis que o conflito é anulado sem estrondo nem fanfarra, à força de piparotes do argumento: o "inadaptado" apaixona-se sem precisar de se esforçar, e, o que é mais, a paixão dá-lhe a força para fazer frente às consequências de um seu pecadilho (sob a forma de quatro irmãos louros e violentos, oriundos do continente profundo). Tudo acaba por ser linear, óbvio, minimalista. Mas existe algo de fundamentalmente reprovável neste virtuosismo da facilidade. Nada tenho contra contos de fadas, desde que se abstenham de lançar pistas que depois são removidas como inócuos adereços: por exemplo, qual a origem das raivas destrutivas da personagem principal? (Claro que a resposta a esta pergunta não teria interesse, não fosse o filme servir-se deste e doutros elementos como alicerces para a sua construção dramática.) O que se aproveita deste filme? Não pouca coisa, a começar pela tónica de burlesco surrealista, admiravelmente servida por Adam Sandler. Se partilhássemos da opinião de que uma grande interpretação compensa um filme duvidoso, estaríamos conversados. Quanto a Emily Watson, para quando um papel digno do talento desta actriz a quem os anos oferecem mais do que retiram ou danificam? Pelo menos assim o pensa a América, que, desta vez, escreveu com tinta verde em vez de tinta violeta, como é seu costume. Lastimo-a, isolada do mundo, algures no Alto Alentejo, e privada das suas canetas preferidas. O tio da América (trocadilho involuntário) é viticultor, e tenciona retê-la até às vindimas.

Martin Scorsese, "Gangs of New York"

(Publicado originalmente a 16/4/2003.)

A América Nasceu nas Ruas: assim o proclama a promoção deste filme. Trabalho escusado será procurar, ao longo das duas horas e tal que este dura, argumentos a favor ou contra essa tese. A Rua é o lugar de todos os tumultos, de todas as manobras, de todas as redenções, mas não acolhe um desabrochar de sentimento nacional, de ideia ou consciência de país. A América sucede e emerge, sob a forma de convulsões da história de origem longínqua, sem esperar que o dédalo confuso das ruas de uma cidade lhe sirvam de cadinho, alheia ao feudo, às desrazões e ao sangue vertido em vão (entenda-se: sem contribuir para engordar a seta do tempo).

Mais do que o duvidoso engendrar da nação, "Gangs of New York" revela-nos a genealogia, os pecadilhos originais e a grandeza optimista de um cinema americano refém dos seus próprios códigos e do seu colossal sucesso, que, em vez de lhe dar segurança, o faz recear a novidade como um risco dispensável; um cinema condenado a reencenar constantemente a sua própria mitologia, sob pena de perder a fé em si mesmo. Um novo visionamento de "Life Lessons", esse precioso monumento da arte de fazer muito com pouquíssimo (Nolte e Arquette, pinceladas, Procol Harum, eis tudo), ajuda-nos a compreender que ninguém saiu vencedor da obstinação de Scorsese em levar a cabo este seu projecto. Mas seria isto uma fatalidade, atendendo à felicidade com que, no passado, ele lidou com a grandeza de meios ("New York New York", "Casino")? Mas também é verdade que, quase desde o início, a carreira cinematográfica de Scorsese se desenrolou na órbita desta questão opressiva: que farei sem Robert De Niro? (E reciprocamente.)

Pourquoi filmer une histoire, quand on peut l'écrire?

(Publicado originalmente a 14/4/2003.)

É com vergonha e lástima que me apercebo de que mencionei o Boulevard des Batignolles sem evocar as primeiras palavras do primeiro dos "Contes Moraux", de Rohmer ("La Boulangère de Monceau"):

«Paris, le Carrefour Villiers. A l'est, le boulevard des Batignolles avec, en fond, la masse du Sacré-Cœur de Montmartre. Au nord, la rue de Lévis et son marché, le café «Le Dôme» faisant angle avec l'avenue de Villiers, puis, sur le trottoir opposé, la bouche de métro Villiers, s'ouvrant au pied d'une horloge, sous les arbres du terre-plein, aujourd'hui rasé.»

Já não existe, a padaria que se situava na esquina entre a Rue de Lévis e a Rue Lebouteux.

(Publicado originalmente a 13/4/2003.)

Apraz-me deveras registar o artigo do Ivan no blog A Memória Inventada sobre a nova geração de actrizes francesas. Sobre a grande KIBERLAIN já eu disse (por enquanto!) aquilo que tinha a dizer. Tanto Élodie Bouchez (revelação de "Les Roseaux Sauvages") como Virginie Ledoyen (que era uma das "8 Femmes") merecem também encómios e longas horas de devoção platónica. Outros nomes incontornáveis são os de Natacha Régnier, Sylvie Testud, Julie-Marie Parmentier, Isild Le Besco e Emmanuelle Devos, esta última um caso único de filmogenia e personalidade de que voltarei a falar.

Popcorn Free Zone #2

(Publicado originalmente a 13/4/2003.)

Prossegue o interessante ping-pong verbal com o Nuno Centeio do Espigas ao Vento.

Como é evidente, a minha animosidade contra as pipocas dirige-se essencialmente ao seu estatuto de símbolo, e à sua associação com um conceito de exibição comercial de filmes hiper-estandardizado e massificado, e que atribui forte ênfase à componente de entretenimento, com o qual não me identifico. (Isto para não falar no cheiro, que não aprecio, nem do deplorável estado em que fica o chão da sala após uma sessão concorrida, nem no ruído masticatório que se acrescenta aos sussurros inoportunos e aos telemóveis tocando ao desafio.) Contudo, importa salientar que não é minha atenção menorizar ou negar legitimidade à vertente mais lúdica e convivial do cinema. Muito pelo contrário. Sou fervoroso adepto da coexistência pacífica de todas as correntes e tendências do fenómeno audiovisual (esta parece tirada do discurso do ministro da tutela...), e é precisamente por isso que considero que vale a pena batermo-nos para que o cinema possua condições para realizar o seu riquíssimo potencial artístico. O que se passa hoje em dia, claramente, é uma progressiva intolerância, por parte dos circuitos de distribuição que desfrutam de uma situação de quase-monopólio, por parte de uma certa opinião pública, por parte de uma certa crítica, contra as veleidades autoristas que teimam em manifestar-se, sobretudo quando provêm de realizadores da nossa praça, e sobretudo se financiados, directa ou indirectamente, pelo contribuinte. Por um lado, isto é compreensível, na medida em que produzir um filme custa muito dinheiro; na literatura e na pintura, o problema coloca-se de maneira muito menos aguda. Mais preocupante é quando se extrapola, com a ligeireza que é apanágio de muita da nossa comunicação social, de um problema estritamente económico para o terreno das considerações estéticas, o que tem como resultado quase inevitável a estigmatização daquele que porfia em levar ao ecrã as suas ideias pessoais em vez de se conformar a cânones e modas. (Para reconhecer à distância este tipo de discurso, basta procurar a expressão "torre de marfim", que nunca deixa de ocorrer nestas ocasiões, com fatalidade crónica.) É contra isto que eu me insurjo.

Em resumo: nada tenho contra um cinema essencialmente lúdico. Não existe incompatibilidade de raiz entre entretenimento e inteligência, tal como pude confirmar ainda recentemente, ao rever um filme ("Groundhog Day", "O Feitiço do Tempo") que é um magnífico divertimento e ao mesmo tempo um subtil e permanente desafio à atenção do espectador. Porém, desta constatação até à defesa de que existe um contínuo entre os filmes de James Bond e "Andrei Rubliov" (já para não falar de Stan Brakhage, Jonas Mekas, Michael Snow...) vai um grande passo. Aqui há tempos, eu seria capaz de concordar com tal afirmação. Hoje, estou convencido de que existe algures entre estes dois extremos uma fractura que nem à custa de boa vontade, muita Araldite e bocadinhos de arame é possível disfarçar; e que, para lá dessa fronteira, existem províncias da criação cinematográfica que não se prestam à assimilação, e que nos forneceram muito do que de belo e duradouro se filmou desde que os irmãos Lumière pousaram a sua câmara na gare de La Ciotat. E é por isso que exalto, antes de todos os outros, aqueles que personificam essa fractura e que a traduzem numa atitude de não reconciliação: o casal Huillet/Straub, Pialat, Monteiro, Godard, Moretti, Cavalier, Kitano, e alguns outros. E é por isso que expressões como "verdadeiro cinema" surgem de vez em quando naquilo que escrevo; que me sejam relevadas em nome da importância que este cavalo de batalha assume para mim. No fundo, isto mais não é do que uma simples questão de vocabulário. Chamemos-lhe "cinematógrafo" (Bresson), "sétima arte" ou "xpto"; pouco importa, desde que lhe seja concedido o elementar direito de existir.

A respeito das cerimónias de entregas de prémios, mantenho que, dos Óscares aos BAFTA, passando por Césares e outros Goyas, mais não são do que campanhas de promoção e bem comportada auto-celebração das indústrias cinematográficas nacionais. Prémios atribuídos pela crítica dever-se-iam revestir de um outro interesse, mas, sintomaticamente, acabam na maior parte dos casos por respeitar as escolhas dos profissionais do cinema.

Para além disso, os vestidos e toilettes dos actores e actrizes que participam nessas cerimónias são, nove em cada dez vezes, simplesmente horrorosos, como se resultassem de uma campanha minuciosamente orquestrada para desfear aqueles que a natureza mais generosamente dotou.

Destaques da Cinemateca para este mês de Abril

(Publicado originalmente a 10/4/2003.)

"One From the Heart" (dia 12, 19h, dia 14, 22h); "Casanova" (dia 22, 19h); "Orfeo" (dia 22, 19h30); "The Baby of Mâcon" (dia 24, 19h); "Le Carrosse d'Or" (dia 24, 21h30); "A Countess from Hong Kong" (dia 26, 19h). Esta escolha é uma escolha pessoal, que não reflecte necessariamente as opiniões deste blog. Mais informações sobre a Cinemateca encontram-se aqui. Fim do post.

Popcorn Free Zone

(Publicado originalmente a 6/4/2003.)

Na sequência de um post de há alguns dias, e de uma troca de comentários com o Nuno Centeio do Espigas ao Vento, vou tentar esclarecer a minha posição a respeito do cinema de Hollywood e dos Óscares, sua reluzente ponta de lança.

O cinema americano pavoneia a sua hegemonia pelos ecrãs de todo o mundo, com excepções pontuais. Será isto inevitável? Sim e não. Sim, porque este é o resultado de um know-how, de maciços investimentos na indústria do entretenimento e de uma máquina de promoção e distribuição que levariam gerações a contrariar. Não, porque medidas de estímulo e protecção de indústrias de cinema local têm dado os seus frutos, um pouco por todo o mundo, revelando que é possível lutar contra a maré. O que é preciso compreender é que a preponderância do cinema Hollywoodita não é resultado de uma simples escolha do consumidor que, com a mesma naturalidade com que beberica uma Coca-Cola em vez de um Sumol de ananás, prefere o produto Made in Usa em lugar de uma qualquer alternativa ao seu dispor. O que se passa é que esta alternativa ou é escassa ou, na maior parte dos casos, nem sequer existe. Ninguém ignora que isto se deve essencialmente ao forte vínculo entre salas e grupos distribuidores apostados em escoar os seus produtos, o que leva a que apenas uma fatia diminuta (e de representatividade mais do que duvidosa) do cinema mundial seja acessível ao espectador médio. Quanto a liberdade de escolha, estamos conversados. Esta situação beneficia ainda da conivência activa de quase toda a comunicação social, que não só atribui infalível destaque às estreias de qualquer blockbuster vindo do outro lado do Atlântico, como veicula com regularidade novidades irrelevantes da vida privada das estrelas, o que funciona, com temível eficácia, como processo adicional de promoção de todo um sistema.

Nada disto constitui novidade, nada disto será excessivamente controverso. A pergunta fulcral que se coloca é: será que, independentemente da vertente comercial, o público fica bem servido do ponto de vista de qualidade e diversidade? A minha resposta é um categórico NÃO. Entendo que o cinema americano, independentemente das numerosíssimas obras-primas que produziu, tem sido de entre todos o mais poderoso agente de normalização estética de uma arte que ainda está tragicamente longe de realizar uma ínfima fracção do seu fabuloso potencial. Ao impor uma estreita latitude de matrizes narrativas, de códigos, de procedimentos, os estúdios americanos ditaram uma ideia de cinema que se globalizou a ponto de excluir filmes que àqueles fogem, de os remeter à condição de objectos não identificados, condenados à marginalização. Existirão muitas excepções, mas todas elas ou terão surgido num contexto muito específico, ou terão resultado de concessões aos cânones dominantes, mais ou menos evidentes. Peter Greenaway afirma para quem o quer ouvir que os mais celebrados realizadores americanos contemporâneos, por exemplo Scorsese, ainda estão a fazer aquilo que Griffith fazia. Concordo inteiramente. É por isso que não posso conter um sorriso quando se fala na "diversidade" do cinema americano. Diversidade, de acordo, mas sempre condicionada a credos e cadernos de encargos robustecidos à força de dólares; diversidade sob custódia, com trela e açaime, vigiada de perto, submetida à tradição, à etiqueta e aos ditames do custo-benefício. Assim como existe uma enorme variedade de gaivotas, mas também existem albatrozes, andorinhas, faisões, alces, escorpiões, varanos, ouriços, gorilas, mosquitos, pumas, protozoários...

Quanto aos Óscares (©, TM, e tudo o resto), mais não são do que a supremamente arrogante emanação de uma indústria auto-satisfeita, convencida de polarizar tudo aquilo que de bom e durável se faz em termos de cinema. A nomeação de "A Vida é Bela" para melhor filme surgiu, a este respeito, como um momento revelador para mim. Até aí, na minha inocência, eu acreditara que o Óscar para melhor filme premiava necessariamente uma obra em língua inglesa, e que o prémio para melhor filme estrangeiro seria algo como um condescendente "Best of the Rest". Afinal, comprovava-se que aquelas alminhas acreditam estar a distinguir anualmente o melhor de entre todos os filmes estreados na área de Los Angeles, independentemente da língua.

Outra ocasião epifânica aconteceu quando o grande vencedor da noite foi "American Beauty". De certa maneira, é mais penoso ver triunfar um filme com pretensões do que uma baboseira destinada a acompanhar a ingestão e digestão de pipocas, e a ser esquecida em menos tempo do que se leva a dizer "Gladiador"; sobretudo quando tal decisão é aclamada como uma vitória do cinema de autor... Pessoalmente, considero que "American Beauty" está para o verdadeiro cinema (chamemos-lhe ou não "de autor", isso seria outra discussão) como o Ricky Martin está para a world music. Trata-se de uma historieta com o mérito de pôr dedos nalgumas feridas, mas que revela incapacidade de ir além de um propósito caricatural inconsistente e irrelevante, condimentado por tiradas embaraçosas sobre a beleza de um saco de plástico ao vento.

Dizem-nos e repetem-nos (a começar por João Lopes, crítico que aliás eu deveras admiro) que há que evitar simplismos e maniqueísmos quando se discutem as problemáticas do cinema, nomeadamente o confronto EUA/Europa ou EUA/Resto do Mundo. Eu sou contra maniqueísmos de qualquer espécie; contudo, também sou contra a insistência em edulcorar e minimizar situações como a que descrevi, que põem em causa o cinema enquanto arte e espaço de criação, e que, levadas ao extremo, conduzem à invisibilidade (na melhor das hipóteses) ou à negação da credibilidade de filmes e cineastas que ousam a diferença, a não reconciliação. É por isso que sou contra os Óscares. É por isso que sustento que este problema envolve uma componente de luta e de resistência que não pode ser escamoteada.

Rainer Werner Fassbinder, "Cuidado Com Essa Puta Sagrada"

(Publicado originalmente a 6/4/2003.)

Uma equipa de filmagem espera por dinheiro e pelo realizador. O dinheiro não chega, o realizador sim, mas demonstra ser parte do problema em vez de parte da solução (para usar uma terminologia em voga). Vindo de quem vem, o contrário é que seria surpreendente: para Fassbinder, as relações humanas (mais do que qualquer abstracta noção de "natureza humana") são o problema, e a sociedade uma bojuda arca de Pandora tão grande quanto for necessário, e excessivamente rica em nichos e fundos falsos. A crónica dos conflitos e tensões entre homens e mulheres condicionados por um momento da história, por um microcosmos social ou pelo preconceito sempre foi o tema predominante da obra de Fassbinder. No caso presente, a harmonia parece irromper da sua própria impossibilidade: o filme sempre se faz, a cena do assassinato protagonizada por Eddie Constantine produzirá o efeito desejado. Desengane-se, porém, quem vê uma nota optimista, devidamente ataviada de "ordem arrancada ao caos", no desenlace que se segue a tudo o que de gratuitamente violento, vulgar e tumultuoso este filme contém. A sardónica autópsia do sucesso de um filme que tudo tinha para naufragar revela, com convicção e autoironia fundidas numa só arma de arremesso, o drama irresolúvel de Fassbinder, que era o de procurar um Absoluto tenso e velhaco, escondido entre a trama densa das interacções entre seres e temperamentos, de preferência muito fortes ou muito fracos, quando lhe faltava a fé e a paciência para os Absolutos solenes e bem soantes de que a época gosta.

Este é ainda um filme com o aliciante de contar no seu elenco com Margarethe von Trotta, Werner Schroeter (muito jovem, de chapéu negro) e Magdalena Montezuma. São consumidas mais cuba libres do que em qualquer outra longa-metragem da história. Os zooms selvagens e a toada de improvisação funcionam como apologia de um cinema cru, mas refinado na sua espontaneidade festiva. Fassbinder realizou 28 filmes em 13 anos. "Cuidado com essa Puta Sagrada" ajuda a compreender tanto a sua importância como o facto de da sua carreira não constarem obras-primas.

De Robert a Sandrine em 3 etapas (2/3)

(Publicado originalmente a 2/4/2003.)

Os actores principais do filme "Rien sur Robert" são o inefável Fabrice Luchini e Sandrine Kiberlain. Das actrizes do cinema francês contemporâneo, nenhuma reúne tanta inteligência, carisma e subtileza interpretativa como Sandrine Kiberlain. Cada desempenho seu é um desmentido louro e delgado da ideia de que a inteligência e perspicácia são inimigas do comediante. Hoje é dia de Sta. Sandrine, efeméride que junta ao agradável o útil, mão na mão.Mas nem sequer era necessário que fosse assim. Tratando-se de Sandrine, o mais tortuoso dos pretextos seria aceitável.

terça-feira, agosto 30, 2005

(Publicado originalmente a 30/3/2003.)

Que melhor maneira de passar um sábado chuvoso do que numa sala escura onde alguém teve a boa ideia de exibir um filme de Fassbinder?Comentários ao filme propriamente dito ficam para outro dia. Pra já pra já, como dizia o Orlando Dias Agudo, contento-me com um desabafo perante a ocorrência de um intervalo nas sessões do Cine Paraíso (ao Largo Camões). Um intervalo para quê? Para ir ao buffet dessedentar-se? Para ser visto nos corredores por quem vem para ver quem vem para ser visto? Para ver quem primeiro faz a pergunta sacramental («Então, estás a gostar?») que, desde 1895, tantas idas ao cinema arruinou?Mas nem tudo são agruras. No Nimas, os lugares deixaram de ser marcados!

De Robert a Sandrine em 3 etapas (2/3)

(Publicado originalmente a 27/3/2003.)

É Desnos quem dá o nome, da maneira mais oblíqua que se possa conceber, à segunda longa metragem realizada por Pascal Bonitzer, "Rien Sur Robert". Bonitzer é um dos habituais argumentistas dos filmes de Jacques Rivette, o que, só por si, o torna digno de louvor, estima, respeito e atenção (para além de um ror de medalhas e de um lugarzinho algures num ventrículo dos cinéfilos deste mundo). É ele também o autor de um livro consagrado a Éric Rohmer que é uma das mais notáveis obras sobre cinema que alguma vez passou pelas minhas mãos.

No filme em questão, nenhuma personagem se chamava Robert, e o título provém da resposta que recebe o próprio realizador (numa fugaz aparição como actor), numa livraria parisiense: «Nous n'avons rien sur Robert Desnos». Bonitzer insinua-se, deste modo, na altamente recomendável companhia de Boris Vian, que, diz-se, chamou a um dos seus romances "O Outono em Pequim" porque não se passava em Pequim e não tinha nada a ver com estações.

Josée Dayan, "Cet Amour-Là"

(Publicado originalmente a 24/3/2003.)

O menos relevante deste filme é precisamente aquilo a que ele parece resumir-se: a paixão entre o jovem Yann Andréa e a envelhecida Marguerite Duras. O idílio é sublimado na sucessão átona dos episódios que a nenhuma história a dois podem faltar (embaraço inicial, ruptura, reconciliação, querelas de território, declínio), na permanência das imagens do verão húmido da Bretanha fazendo lembrar quadros marítimos de Nicolas de Staël, em tudo aquilo (e é muito, e é perecível) cujo esplendor mate oferece carácter a este filme. Este amor, imprevisto mas assimilado, como que recua para ceder lugar a algo que dele nasce, mas que no mesmo instante o ultrapassa e percorre a matéria do filme como um frémito: falo da contaminação de um discurso por outro; dessa presença esguia e masculina que contraria a resignação de uma escritora à solidão e ao seu caudal de palavras, e da necessidade de enfrentar palavras de sedução que ela talvez preferisse confinadas às bocas de Anne-Marie Stretter e do vice-cônsul; falo de membros que acrescentam à mortalidade o facto de caminharem para a morte; falo de lábios e do gosto do vinho.Aquele amor conteve o seu quinhão de felicidade, partilhado por aqueles que o viveram. Talvez a lição deste filme seja a constatação de que, para além da transiência desse júbilo, nada mais existe nem existiu. Nem Marguerite foi egéria, nem Yann foi Galateia; a paixão não engendrou um fenómeno de continuidade; ao génio sucederam as mediocridades da morte e da vida. Aquilo que de amargo tem esta verdade é também aquilo que de profundo e de útil este filme nos deixa.

Stephen Daldry, "The Hours"

(Publicado originalmente a 24/3/2003.)

Este filme engoda-nos com uma edénica conciliação entre a diacronia corriqueira da flecha do tempo, por um lado, e a promessa de epifanias sincrónicas adequadamente inseridas numa matriz de secular procura da felicidade. Quem considera, como o autor destas linhas, que nenhum esforço artístico honesto tem o direito de se furtar a esse fulcro da natureza humana que é a sede de significados, não pode negar um gesto de aprovação perante um filme cujo tema único parece ser uma aspiração pela plenitude capaz de saltitar de geração para geração com a agilidade de uma moviola. O que falha, pois, em "The Hours"? Essencialmente, isto: da subversão prometida no início nada resta, afinal, a não ser algumas bruscas elipses e raccords mais ou menos engenhosos. Cada destino pessoal joga-se na bem comportada sequência de factos, sucessos, coisas e estações; cada segmento dramático respeita convenções e códigos com uma robustez do mais louvável que há (veja-se o suicídio do poeta, veja-se a cena na plataforma da gare entre Virginia e Leonard); nem os milagres, nem os vórtices, nem as caixas azuis lynchianas se repetem.

Que mais? Meryl Streep é prodigiosa no alento dramático e na contenção, Julianne Moore é prodigiosa no orgulho resignado e na contenção, Nicole Kidman é prodigiosa na agreste impenetrabilidade anglo-inglesa e na contenção; pela enésima vez, o cinema americano expõe aos olhos do mundo a sua falta de à vontade com o génio, rejeitado, na melhor das hipóteses, à condição de neurose peso-pluma (tivesse Foucault visto "A Beautiful Mind", e alguma coisa de interessante teria daí saído, palpita-me); foi uma boa coisa que os Óscares (©, TM) não tenham consagrado esta obra, para que ninguém se iluda com fantasias de abertura a um cinema mais adulto por parte de Hollywood, como sucedeu aqui há anos com "American Beauty" (filme bem mais insignificante e apalermado do que este, de resto).

(Publicado originalmente a 23/3/2003.)

Hou Hsiao-Hsien, Tsai Ming-Liang, Wong Kar-Wai, Abbas Kiarostami, Andrei Sokurov, Aleksei German, Otar Iosseliani, Nanni Moretti, Mario Martone, Éric Rohmer, Jean-Luc Godard, Jacques Rivette, Jean Eustache, Maurice Pialat, Anne-Marie Miéville, Alain Cavalier, Victor Erice, Manoel de Oliveira, João César Monteiro, Pedro Costa, Peter Greenaway, Derek Jarman, Lars von Trier, Aki Kaurismäki, Agnès Varda, Chantal Akerman, Jean-Luc Godard, Danièle Huillet, Jean-Marie Straub, Jacques Rozier, Jean-Luc Godard, Philippe Garrel, Claire Denis, Alain Guiraudie, Arnaud Desplechin, Jean-Luc Godard, JEAN-LUC GODARD, Rainer Werner Fassbinder, Rudolf Thome, Béla Tarr, Theo Angelopoulos, Takeshi Kitano, Nobuhiro Suwa, Nagisa Oshima, Jane Campion, Raul Ruiz, David Lynch, Hal Hartley, Stan Brakhage, Michael Snow, Jon Jost, Abel Ferrara.

Em tempo de Óscares (©, TM), interessa cerrar fileiras, e evocar, em jeito de litania, alguns daqueles que são ou foram responsáveis pela criação cinematográfica genuinamente independente, e marcada pela aspiração de fazer do cinema mais do que uma bem comportada manifestação audiovisual, subserviente face a interesses comerciais e a ditames estéticos impostos pela tradição ou pelo ar do tempo, coarctada pela obrigação de agradar a um leque de públicos tão vasto quanto possível.

Atenção, uma cerimónia de entrega de prémios pode esconder outra

(Publicado originalmente a 22/3/2003.)

Os Óscares estão para o cinema assim como a secção de livros do Jumbo está para a literatura.

The title without the name?

(Publicado originalmente a 13/3/2003.)

Dos cartazes de promoção do novo filme de João Botelho não consta o nome do realizador. Negligência ou sinal dos tempos?

(Publicado originalmente a 11/3/2003.)

Prometo solenemente oferecer o seu peso em caramelos ao distribuidor que traga para Portugal o filme de Alain Corneau "Stupeur et Tremblements". Isto apenas porque gostava muito de ouvir a Sylvie Testud falar em japonês.

Os que ainda vivem saúdam-te

(Publicado originalmente a 11/3/2003.)

Decepcionante, a notícia/obituário dedicada à morte de João César Monteiro nos "Cahiers du Cinéma". O autor, Stéphane Bouquet, começa por admitir que se esqueceu quase por completo dos filmes de Monteiro, o que, para uma revista que nunca regateou elogios ao realizador, é no mínimo bizarro. Nenhuma menção é feita ao seu último filme ainda por estrear. Para cúmulo, enganam-se na data do óbito (foi a 3 de Fevereiro, e não a 8). Independentemente de uma ou outra questão de pormenor, contudo, o que mais desconsola é um certo comedimento que parece desajustado à grandeza e à sublime originalidade de Monteiro. Impõe-se a comparação com Pialat, cujo desaparecimento mereceu reacções muito mais copiosas. Admita-se, contudo, que, em termos da influência, directa ou indirecta, na sua geração e nas seguintes, a figura de Pialat assume uma estatura imensamente mais significativa do que a de Monteiro (que não deixará herdeiros - e poderia ser de outro modo?). Desse ponto de vista, compreende-se a disparidade. Ainda assim...

Abbas Kiarostami, "10"

(Publicado originalmente a 4/3/2003.)

Ainda a quente, pouco tempo após o visionamento, eis as minhas primeiras reacções ao filme "10", de Kiarostami.Os caminhos que Kiarostami tinha vindo a escolher, nos últimos anos, embora representassem uma aposta na depuração e na economia de meios, não apontavam necessariamente para a demonstração de arte pobre que é este filme. Uma câmara,um carro e actores: eis os ingredientes de "10". E é tudo? Não, não é tudo. Defendo que todo o sentido, toda a portentosa legitimidade da obra de Kiarostami residem na convicção de que os elementos de um filme vulneráveis à descrição, os pólos que sustentam enredos, determinações geográficas ou sociais, motivações, não são mais do que a escada que nos ajuda a saltar o muro, e que perde o interesse uma vez alcançado o topo, esquecida em favor do inebriante panorama de pomares, estradas, colinas. Ou seja, e concretizando: no caso de "10", a extrema parcimónia dos meios induz no espectador atento, à míngua de pontos de apoio, essa disposição de procurar o "algo mais" onde se move o cinema de Kiarostami, essa região tensa de significados, ao mesmo tempo ascética e sensual, corriqueira e perpétua inimiga do senso comum, essa província que outros cineastas preferem ignorar, por falta de meios, falta de vontade, falta de talento ou falta de coragem. Deploro que a comunicação entre o cinema mais clássico (leia-se: aquele que chega às nossas salas) e o cinema dito de vanguarda ou experimental seja tão pobre, para não dizer quase inexistente. Perante "10", não pude deixar de pensar em "Beauty #2", de Warhol, no qual o plano fixo ultrapassa o seu estatuto de dispositivo cinematográfico para se transformar num interveniente, e não dos menos tirânicos ou manipuladores. Em "10", é certo, existe mais do que o plano fixo, e tanto a gestão do campo e do contracampo como as elipses temporais (já para não falar do perpétuo traveling que decorre do andamento da viatura) são inteligentemente utilizados ao serviço do fluxo dramático do filme (que existe, se bem que deliberadamente rarefeito). Porém, o constrangimento dos discursos e das atitudes, consequência do confinamento, é algo de comum a ambos os filmes. Parece-me que este apetite pela exploração de um limite funciona aqui como tentativa de colocar em evidência um aspecto específico da arte cinematográfica em que Kiarostami, manifestamente, acredita, ao contrário de tantos dos seus pares e daqueles que lhes concedem semanalmente o seu beneplácito, por meio de recensões tíbias e contentinhas.De tudo o que acima se lê não se conclua que eu recomendaria "10" para um primeiro contacto com a obra de Kiarostami. Por menos disposto que eu esteja a defender que este filme exibe como único trunfo uma radicalização rebarbativa, acredito firmemente que obras fundamentais como "Através das Oliveiras" ou "O Vento Levar-nos-á" (para não mencionar "Close-Up", simplesmente um dos filmes fulcrais das últimas décadas) constituirão uma escolha mais frutuosa.

Este blog destina-se a acolher, por ordem cronológica, os textos sobre cinema, da minha autoria, que têm vindo a ser publicados no Umblogsobrekleist (tanto na versão antiga como na sua encarnação mais recente), desde Março de 2003.

Os textos serão publicados tal qual, eventualmente com menoríssimas alterações ou adendas, ou com alterações do título.

Pelo menos numa primeira fase, neste blog não serão publicados textos originais.