(Publicado originalmente a 29/7/2003.)Considero Takeshi Kitano um dos poucos cineastas realmente significativos que se revelaram nos últimos 10 ou 15 anos. Por isso, e aproveitando também a estreia recente da sua última longa-metragem ("Dolls") entre nós, escolhi-o para iniciar esta nova rubrica, que se quer ao mesmo tempo homenagem, esboço de intervenção crítica e visita guiada pela filmografia do autor.
"VIOLENT COP" (1989): Inicialmente, Kitano deveria ser apenas actor neste filme. A indisponibilidade do realizador, contudo, acabaria por levá-lo a assumir as rédeas do filme, e a assinar aqui a primeira obra da sua filmografia. Para me servir de um termo de comparação retirado do imaginário ocidental, "Violent Cop" pode ser visto como um "Dirty Harry" nipónico, minimalista, directo nos meios e na brutalidade, mas ao mesmo tempo oblíquo na sua absoluta recusa de qualquer vestígio de estatuto de paladino do Bem para o seu anti-herói. A animosidade da personagem principal (um inspector da polícia) contra a criminalidade pequena e grande, contra a crueldade e a corrupção humana, é obstinada, monótona, intensa, desprovida de altos e baixos, e alheia a qualquer veleidade de melhorar o mundo. A este estado de espírito adequa-se a repetitiva estrutura do filme, marcada por longas sequências que mostram Kitano caminhando, simplesmente, na rua, como que isolado de qualquer destino e de qualquer propósito. "Violent Cop" é um filme que anuncia todos os outros, apresentando temas e obsessões que Kitano teria oportunidade de trabalhar mais tarde com outra liberdade criativa.
"JUGATSU/PONTO DE EBULIÇÃO" (1990): Primeiro filme 100% pessoal de Kitano, "Jugatsu" constitui uma excepção na sua obra na medida em que ele aparece como actor (usando o pseudónimo pelo qual é mais conhecido no Japão, "Beat" Takeshi) num papel secundário. Em todas as outras suas obras, Kitano ou não participa como actor ou é protagonista principal. "Jugatsu" impressiona pela maneira como, tão cedo na sua carreira, o cineasta manipula já com tanta segurança os meios ao seu dispor, a ponto de construir um espectáculo sumptuoso onde o argumento e o refinado tratamento das imagens se conjugam naquilo que apetece ver como uma reflexão sobre uma obra por vir. Explico-me: na sua lógica, algures entre sonho, visão e aspiração da personagem principal (um jovem apático, que penetra quase por acaso no universo dos gangsters), "Jugatsu" integra diversos elementos dos filmes subsequentes (os yakuza, o desporto, a praia, a violência gratuita) num todo que apenas o burlesco, o absurdo e o inverosímil sustentam, na maior das precariedades. E é precisamente esta gritante fragilidade do conjunto que salienta o papel e a função de cada um dos elementos, e a sua importância na duvidosa coesão do edifício. Como se Kitano precisasse de adquirir confiança a este respeito, projectando na ordem do hipotético aquilo que, em obras subsequentes, apareceria como realidade sólida, inescapável, sem fissuras.É também em "Jugatsu" que pela primeira vez se nota outra das imagens de marca de Kitano: a coexistência da beleza mais sublime com a mais crua violência (inesquecível, a sequência da arma escondida no meio do ramo de flores).
"A SCENE AT THE SEA" (1991): Um jovem surdo-mudo; a sua namorada, também surda-muda; ele trabalha na recolha do lixo; um belo dia, encontra uma prancha de surf no lixo; o seu sonho é tornar-se surfista e participar em competições; conseguirá? Os ingredientes parecem reunidos para uma pessegada sentimentalona. Mas com Kitano atrás da câmara, como é evidente, sentimentalismo é a última coisa que se poderia esperar. Com uma contenção absoluta, Kitano alcança a proeza de ao mesmo tempo contar uma história simples e poderosa de dignidade e proceder a uma profunda reflexão visual sobre a relevância ética de elementos fílmicos básicos, em particular o
plano, que 99,9% dos filmes tomam como um banalíssimo dado adquirido, e que aqui percebemos ser o veículo que exprime e define a realidade das relações humanas nas suas vertentes mais simples: ausência, presença, distância.
"SONATINA" (1993): Na minha pessoalíssima opinião, o melhor e mais coerente filme de Kitano. Entre dois períodos onde predomina a violência, encontramos os yakuza do costume perdidos numa praia remota, sem nada para fazer. É o momento dos jogos, mais ou menos perigosos, numa terrível dilatação do tempo em que o lúdico e o comezinho ocupam a concavidade deixada pela súbita ausência de barbárie. Quanto mais se assemelha a um gentil período de recreio, mais a fatalidade parece obscena. Passa algum tempo até que nos apercebamos de que, nessa solarenga suspensão do enredo, aquilo que mais angustia é a naturalidade com que aceitamos a ausência de alternativas. Nada há a fazer a não ser aguardar a retoma da violência. Nada, a não ser, precisamente, ocupar o tempo, e isto é tão válido para aqueles dias de lazer roubados à fatalidade como para o próprio tempo do filme, imitando a vida na sua obsessiva necessidade de ser preenchida, seja com o que for. Para evitar o vazio, tudo é legítimo, até campeonatos de
sumo na areia.
"GETTING ANY?" (1995): Nunca vi este. Relata quem viu que nesta comédia, deliberadamente alarve, "Beat" Takeshi dá largas à faceta de comediante que o popularizou no seu Japão natal. O mau gosto, a vulgaridade e o burlesco têm lugar de honra. Dificilmente exportável, presume-se. Não posso dizer que morra de desejo de o ver; porém, Kitano já nos deu múltiplas razões para merecer o benefício da dúvida.
"KIDS RETURN" (1996): Primeiro filme depois do grave acidente de motorizada que deixou Kitano com uma paralisia facial parcial. As recordações que guardo deste filme são muito vagas. Na maneira como aborda a vulnerabilidade e volubilidade da juventude, aparece como um gémeo de "Jugatsu", mais sombrio e realista.
CONTINUA AMANHÃ (OU PROXIMAMENTE, EM TODO O CASO). Faz-se tarde, e tenho ainda de transmitir um recado do colega Ponziani.